segunda-feira, 5 de setembro de 2005

toca a activar

Há algumas semanas atrás o Presidente da República Jorge Sampaio, acabado de chegar da Finlândia, gritava nas Televisões que nesse país exemplar os professores passavam muitas mais horas nas escolas do que os professores portugueses. E que era preciso um esforço de todos. Os mais atentos terão visto neste grito uma pré-aviso de que também nós em Portugal iríamos, dentro em breve, passar mais tempo nas escolas. O presidente só se esqueceu de comparar a qualidade das instalações, o nível cultural dos alunos e dos professores e o grau de satisfação que obtém com aquilo que fazem, o salário, o que uns e outros fazem realmente nas escolas no tempo que lá passam e, sobretudo, esqueceu-se de explicar em que medida é que passar mais tempo nas nossas escolas significa melhor educação.

A Secretaria Regional da Educação (dando passos à frente do Ministério da Educação, como tem vindo a ser seu hábito; veja-se o caso das novas regras ao concursos de professores que Sócrates quer introduzir no próximo ano no continente e que por aqui já não são novas) introduz novidades - num decreto aprovado a 11 de Agosto! - nos horários dos professores obrigando-os agora a ficar 26 horas na escola quando antes apenas teriam de ficar, no máximo, 22 horas (poderiam ficar muito menos horas, dependendo das reduções por antiguidade). Agora todos passam a ficar na escola 26 horas, ou a dar aulas, ou em actividades para-lectivas (uma maneira politicamente correcta de dizer "a dar aulas"), ou em actividades técnicas, quer dizer reuniões, preparação de materiais didácticos, etc. (coisas que já se faziam antes, pelo que aqui não há grande novidade, para além de serem horas que passam a estar obrigatoriamente no horário e que o professor terá de ficar na escola, pelo menos até assinar a folha de presença!).

Seria interessante que a SRE discutisse, com alguma profundidade, a justiça e a justificação destas medidas. Ou que, no mínimo, sugerisse que algumas dessas horas fossem ocupadas a estudar formas de melhorar a educação (o que, como se sabe, não se pode fazer apenas através da criação de leis, por muito boas que elas possam ser). Seria interessante porque julgamos estar num regime democrático onde os legisladores devem estar obrigados a justificar as suas medidas e a justificá-las de forma que todos os implicados nesse acto legislativo achem razoável. Legislar sem justificar é próprio de regimes autoritários. Disfarçar uma possível justificação por detrás de chavões como o muito usado: "em período de discussão" (que neste caso seria Agosto!), não é suficiente. Pois seria preciso ver como se faz esta discussão, quais os seus resultados e que reflexos (que poder?) tem ela para alterar, para melhor ou para pior, o estado de coisas onde se quer intervir. Coisas que não se têm visto em actos legislativos que passam, de facto, por algum período de discussão; período que em muitos casos é mais de informação do que de discussão.

Algumas reações a essa medida legislativa podem-se desde já registar. Há aqueles que simplesmente não conhecem as palavras 'justificação' e 'justiça', para os quais todas as medidas que aproximem as outras pessoas da sua situação são boas. Poder-se-ía classificar esta posição de "posição do escravo egoísta".
- Eu sou escravo (trabalho 40 horas, ou mais) e, portanto, se há medidas que tornam os outros escravos (que obriguem os outros a trabalhar 40 horas ou mais) elas são boas. Eles que trabalhem que eu também trabalho.

Aqui não interessa se nem todos os trabalhos são iguais, se a uns se exige trabalho físico e a outros um trabalho físico e mental; se simplesmente ser 'escravo' é errado, e logo o que se deveria fazer era combater a escravatura e não desejar que todos sejam escravos.

Como é óbvio o escravo egoísta apoia as medidas em causa; na realidade apoia todas as medidas que aproximem os outros da sua condição. Que seja pelas piores razões deveria ser motivo de preocupação. Pois aqui não há distinções: qualquer dia são os professores universitários (que no máximo dão doze horas de aulas por semana ("que pouca vergonha"); e os médicos ("que é só ganhar dinheiro"), e os técnicos ("p'rá ali fechados sem fazerem nada todo o dia"), e os políticos ("esses então!"). São estas posturas acríticas e intelectualmente doentias que costumam apoiar as leis e as pessoas que dão origem aos regimes totálitários.

Outra postura, talvez mais visível, é a que se traduz nas respostas dos sindicatos. Contra as posições em causa, gritam em voz alta que lhes estão a retirar direitos adquiridos, que não há discussão, etc. Em geral tudo coisas verdadeiras e defensáveis.

Apesar de ser contra o acto legislativo em causa, esta posição não deve causar grande arrepio no legislador. Por um lado, a actividade sindical parece gozar de um certo descrédito junto dos governantes, que encontraram formas de desacreditar a principal arma dos sindicatos, ou seja a greve. Veja-se o resultado da última greve de professores. Por outro lado, parece haver um certo compromisso silencioso entre a garantia da manutenção dos interesses instalados dos dirigentes sindicalistas - garantia dada pelo legislador que assim reconhece os sindicatos como uma espécie de seus súbditos - e o desejo, por parte dos dirigentes sindicalistas, de continuar a gozar de um estatuto diferente. Para além disso, parece haver toda uma nova concepção do que é ser cidadão e do que é ser funcionário público que não se adequa com as regras sindicalistas definidas aquando da derrota do estado fascísta. Talvez tenhamos que encontrar novas formas de manifestar os nossos interesses e de defender os nossos direitos, formas que têm que ir além da ineficaz adesão, ou não, a uma greve. Por outras palavras, o poder aprendeu a domesticar os sindicatos, e estes deixaram de ser eficazes no cumprimento do seu papel.

Uma outra reacção - alguns quererão chamar-lhe não reacção - é de longe a mais numerosa e cujas consequências são difíceis de vislumbrar uma vez que a sua principal arma é o recurso à aceitação silênciosa. Aqui só podemos supor.
Em parte esta reacção é a reacção normal. Há novas regras, nós só temos é que as cumprir. de que outra forma poderia ser? Podemos não concordar (nunca concordamos com mais trabalho, mas talvez pudéssemos concordar com trabalhar mais a sério), mas não podemos fazer nada. Este "não fazer nada" é que parece arrastar consigo alguns perigos que, a longo prazo - e por isso o legislador também não deve ver aqui grande perigo, uma vez que esse não é o seu horizonte - poderão ser fatais. O perigo está no facto de as coisas, em vez de melhorarem, piorarem. E continuarem a piorar, até que os professores passem a entrar nas escolas às sete da manhã, passem a ser guardas dos alunos nos refeitórios e a saír às duas da tarde e ir a correr para o seu segundo emprego, como acontece nos EUA (situação a que o Presidente também poderia ter recorrido na sua comparação e onde os resultados também estão à vista).
A reacção segue-se quase como uma consequência lógica de um acto injustificado, porque sem apoio dos implicados nele. Outra forma de dizer o mesmo seria: "aceitamos, mas não melhoramos, pioramos". Não vamos fazer por trabalhar melhor com os alunos, não vamos tentar dar melhores aulas, não vamos "construir uma escola melhor" (frase bonita! que muitas escolas exibem), não vamos esforçar-nos por saber mais, por saber distinguir o verdadeiro do falso, o justo do injusto, o correcto do incorrecto. Mas vamos ficar na Escola o tempo que nos exigirem.

Esta postura parece-me ter tanto de realista quanto de assustador. E de outra forma não poderia ser. Se não nos revemos minimamente naquilo que nos pedem como podemos tentar ser melhores. Mas em educação é disso que se trata: sermos melhores.
E sermos melhores nunca foi fácil e exige tempo, dedicação e dinheiro. E, mesmo assim, é sem garantias.

Vislumbrar alguma melhoria a longo prazo passaria por alterar a formação inicial de professores. Fazer com os cursos de professores algo semelhante aos cursos de Medicina. Poucas vagas e médias altas. Não queremos todos, queremos os melhores. Passaria por exigir qualidade nas Universidades (será preciso obrigar os académicos a passar mais tempo no local de trabalho?) Como é possível dizer que os professores são maus, produzem pouco, e não discutir quem os formou e como os formou? Como é possível não ter em conta que foi a SRE, através de mais uma das suas inovações nos concursos, que criou um decreto (altamente injusto e certamente inconstitucional) que protege os professores formados na Universidade dos Açores dando-lhes prioridade no concurso e preterindo aqueles que vêm de outras Universidades. Na prática significa que um aluno com média de dezasseis formado em Coimbra fica atrás de um aluno com média de dez formado nos Açores. Na prática significa que já não vêm professores de Coimbra para as escolas açoreanas. Mesmo que a Universidade dos Açores fosse a melhor, e não há nada que o prove, antes pelo contrário, a medida continuaria a ser injusta. E como esquecer a famosa situação da disciplina de DPS ("Desenvolvimento Pessoal e Social", o que será?), para a qual a Universidade dos Açores abriu e fechou (à pressa, a licenciatura concluiu-se, sem grande alarido, em dois anos!, mais rápido do que nas melhores Universidades da Europa, onde as licenciaturas são de três anos) um curso de professores do qual saíu uma única leva de licenciados. Inexplicável é o facto de não haver um único professor de DPS nas escolas açorianas.
Como podemos acreditar que o objectivo é realmente melhorar a qualidade da educação nos Açores?

(LFB)

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