segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O Condomínio da Terra de Paulo Magalhães

Este livro, escrito por um ambientalista com formação em Direito, pretende contribuir com uma solução para a crise ambiental que afecta todo o planeta. O livro tem duas orientações: uma filosófica e outra jurídica. Considerarei, sobretudo, alguns aspectos filosóficos. A substância filosófica, que serveria de fundamento às novidades que o livro apresenta, é muito discutível.

A assumpção, por parte do autor, de uma posição realista em relação ao problema da natureza da realidade (uma questão metafísica com amplas conexões epistemológicas) é um ponto fundamental na construção de toda a ideia de um condomínio Terra. É desse pressuposto que depende a premissa de que a “Biosfera é a Realidade em si”. O autor não concebe a hipótese filosófica contrária de que o mundo pode ser apenas uma ideia, ou um sonho, ou apenas uma realidade virtual (o que não quer dizer que o seja, mas as meras possibilidades sempre fizeram pensar os filósofos). Sendo que é o próprio autor que se coloca no domínio filosófico (o que não é de todo necessário para se apresentarem soluções jurídicas para problemas ambientais), seria então de esperar que ele discutisse e rebatesse algumas dos argumentos que se discutem actualmente sobre a questão da natureza da realidade. Mas tal não acontece.

O problema fundamental é o de saber se todo o conhecimento é sempre conhecimento para nós, conhecimento sempre limitado pelas nossas capacidades cognitivas e sensoriais ou se, pelo contrário, será possível conhecer a realidade em si, separada do conhecimento humano e à qual seja possível aceder de um modo que vá além da mera intuição/ crença/ fé na existência desse mundo real independente da minha percepção dele. A grande dificuldade está em demonstrar a existência do Real de uma forma que não seja dependente de um conhecimento para nós.

Em relação a este problema, o autor defende que a biosfera não deve ser entendida como uma "organização ou concepção humana". Um exemplo:

"Hoje sabemos que a natureza pensada conhece um milhão e oitocentas mil espécies, e a natureza em si, estima-se em 8 milhões." (p.17, o itálico e o negrito estão no livro, tal e qual.)

No entanto, a palavra a negrito deveria ser 'estima-se' e não 'realidade em si', precisamente porque uma estimativa não deixa de ser uma acto do nosso conhecimento, aliás uma acto do possível e não do conhecimento. O que, só por si, é muito pouco para estabelecer a existência da 'realidade em si' para lá de qualquer dúvida razoável.

Ainda em relação ao problema da realidade em si, o autor e seus mentores colocam-se numa perspectiva anti-cartesiana para quem, dizem-nos, só o pensado é real. Mas, se é consensual que a posição mecanicista da natureza defendida no séc. XVII é errada, isso não é suficiente para que a existência da 'Realidade em si' fique demonstrada. Muito menos apenas com recurso a afirmações algo contraditórias como a seguinte: "há uma percepção da sua eventual existência", ou como quando, citando Soromenho-Marques, o autor nos diz que devemos "inovar a própria realidade" (p.35). Ora, a percepção é um acto cognitivo e, assim sendo, não estamos a falar do real em si, mas sim do real para nós. A questão é a de saber se esse real em si não nos escapará sempre dadas as nossas limitações cognitivas. E “inovar a realidade” é bonito, mas o que significa no contexto da discussão filosófica? São distinções elementares, mas que parecem escapar a Paulo Magalhães.

As leis da natureza são aqui apresentadas como se fossem imutáveis e como se fossem a demonstração de que a realidade em si existe separada do sujeito. Quando o que os filósofos das ciências afirmam é que as leis da natureza são uma construção da mente humana sujeita a revisões e a falsificações como qualquer enunciado universal.

Que existe um mundo lá fora ninguém duvida (à excepção, claro, de alguns filósofos). A questão filosófica central não é a de saber se os golfinhos comunicavam, ou não, antes de nós sabermos isso. É claro que comunicavam. Como o autor afirma:

"os golfinhos não estiveram à espera que o homem começasse a decifrar a a sua linguagem para comunicarem entre si" (p.23).

A questão é que não há forma de o sabermos antes de o sabermos! Por outras palavras, o dilema clássico é: 'como é que eu sei que o meu quarto continua a existir quando eu lá não estou?' Ou, em termos ambientais: como é que eu sei que sou responsável pela crise ambiental antes das evidências científicas me mostrarem que eu o sou?

Paulo Magalhães pode falar do "saber que a natureza sempre soube"; da Biosfera ter sido "desde sempre globalizada e independente" (p.23); do Direito como aquele que, na criação da ideia de condomínio, "negociou com o real" (p.84) mas isso, filosoficamente falando, não são mais do que metáforas bem intencionadas. A confusão conceptual aqui presente é a não distinção entre o "sabe que existe" e o "existe separado de".

Em termos éticos, o autor coloca o ser humano num domínio perfeito e ideal onde o homem respeitaria o ambiente - o que, para quem se diz tão seguro da realidade, não deixa de ser irónico - , esquecendo que no século XX o homem destruiu toda a noção razoável de humanidade e esquecendo que se um homem não consegue respeitar outro homem, então como respeitará noções tão abstractas como a Bioesfera ou o Ambiente. Antes de destruir o ambiente o homem já se tinha destruído como homem ético. E esta destruição está tão próxima de nós que é ainda quase possível sentir, por toda a Europa, o odor de tal destruição. Em querendo colocar-se no plano filosófico da natureza humana, talvez seja condição necessária começar por reconstruir, se isso for sequer concebível ainda, a estrutura ética do humano.

Nada disto impede impede o autor de exigir o ideal de:

"uma nova consciência do estar 'em relacionamento', na sua dimensão jurídica, que se alarga para além das relações intra-espécie". (p.24)

Mas estes são pormenores filosóficos que, dirão alguns, em nada ajudam a salvar a Terra.

Vejamos então algumas das ideias inovadores que o livro apresenta pra concretizar tão almejado objectivo. O problema a partir do qual o autor constrói a sua solução é o de saber como incluir as leis da natureza nos sistemas jurídicos que regem a vida política das pessoas (veja-se p. 66 e seguintes), uma vez que o aquecimento global veio acabar em definitivo "com as fronteiras tradicionais da soberania dos estados" (p.68). A resposta está na inclusão das leis da natureza no direito natural de onde brota "o sistema jurídico da sociosfera".

A ideia inovadora é a de que assim como um indivíduo livre e soberano que viva num prédio tem de limitar a sua liberdade e a sua propriedade obedecendo às imposições ditadas pelo administrador do condomínio (terá de pagar uma montante fixado para manutenção dos espaços comuns, participar em reuniões, contribuir com dinheiro para obras de beneficiação, etc.), também o Estado livre e soberano deverá limitar a sua soberania por forma a melhorar o condomínio que é o planeta Terra (sendo os espaços comuns a Atmosfera e a Hidrosfera e, com menos garantias, a Biodiversidade). Defende-se que o modelo de privatização dos recursos ambientais pós Kioto tem algo de errado precisamente porque não se pode dividir aquilo que é uno e interdependente – a Biosfera. De nada servirá sermos poucos poluidores quando os nossos vizinhos o são em demasia, e são-no legalmente porque compraram direitos de poluição. O problema não está tanto na solução encontrada, mas sim no facto de as verbas provenientes do “uso privado de um recurso público não serem directamente empregues no melhoramento das partes comuns” (pp.124-125).


A ideia é interessante mas fica a seguinte dúvida. Como é que as verbas resultantes da necessidade de conservar o condomínio poderiam diminuir significativamente os problemas ambientais que afectam o planeta? Até que ponto o dinheiro é capaz de resolver o problema do aquecimento global? O problema não parece ser uma questão de verbas - por analogia com os prédios, uma questão de manutenção do edifício, ou de beneficiação – mas sim uma questão de formas de vida resultantes da industrialização e da depêndencia irrecuperável dos seres humanos da tecnologia. E dessas formas de vida geradoras de conforto e prazer ninguém parece estar genuinamente interessado em abdicar. Se for uma questão de verbas, como este livro sugere, isso arranja-se, mais cedo ou mais tarde. Se não for, então esta solução terá até o efeito indesejado de criar a ilusão de que, afinal, o problema está a ser resolvido pela “Assembleia de Condóminos”.

(LFB)

Sabedoria

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"Era a arte que tocava a natureza humana, em todos os seus lados. Tocar um lado somente, o lado político, limita. Seja ele qual for, da esquerda ou da direita. Limita." (...)

" Não há nada que não exista antes. Não há, por exemplo, nenhuma forma, nenhum desenho, por mais estranho que seja, que não exista na natureza. Toda a criação é uma recriação. É o conhecimento do conhecimento que se vai tendo e ainda do que estará na bolsa do subconsciente." (...)

"... foi a partir da máquina a vapor que se criou o capitalismo industrial; e foi o capitalismo industrial que criou a classe operária; e foi a classe operária que criou Marx; e foi através de Marx que se criou o comunismo na Rússia; e foi o comunismo que provocou a formação do fascismo, defendendo-se do comunismo."(...)

"Quem tem um livro nunca está só. Quando se está a ler, está-se a comunicar com alguém. E, além disso, é íntimo. No livro são permitidas todas as intimidades e todas as coisas públicas. Porque é um confidente. Confessa-se qualquer coisa de inconfessável. O cinema é mais público. Privado seria interdito." (...)

"Todas as idades servem para morrer." (...)


Manoel de Oliveira, entrevista ao jornal Expresso, revista Actual, de 8 de Dezembro de 2007.