quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A política segundo César

Quem ainda não sentiu os dissabores da política democrática que Salazar expressou quando disse que 'detestava a política do fundo do seu coração; todas aquelas promessas incoerentes e barulhentas, as exigências impossíveis (...) o oportunismo que não se preocupa nem com a verdade nem com a justiça, a busca inglória da fama não merecida, (...) a distorção dos factos, todo aquela fervorosa e barulhenta excitação'?
(Huizinga in The Times, 16 November 1961, citado em Crick, In defense of Politics, Continuum, 5ª ed. 2005)


César tornou-se uma daquelas pessoas perigosas para quem a política é sempre uma coisa desagradável, uma coisa palaciana.

Recentemente, aquando da apresentação e discussão do programa de governo regional - após o novo presidente da Assembleia Regional (F. Coelho) ter dito que afinal se deveria votar o programa, contradizendo aquilo que havia dito na noite anterior onde teimou que, tendo o governo maioria e não havendo moções, o programa não teria de ser votado pela Assembleia -, gerou-se um mal-estar entre partidos da oposição e o partido do Governo Regional. Aqueles - na noite em que não puderam votar contra o novo orçamento - gritaram que era uma injustiça anti-democrática, uma coisa nunca vista, que não podia ser. O surpreendente foi que, no dia seguinte - quando Coelho deu o dito por não dito - estes mesmos indignados votaram contra mas não abriram bico, nem declarações de voto, nem protestos, nada, até hoje silêncio absoluto sobre o assunto. Segundo as notícias, o seu silêncio teria sido trocado pelo adiamento sine die da proposta da maioria para reduzir os custos da Assembleia. As subvenções dos grupos parlamentares seriam reduzidas e, por consequência, haveria menos pessoas a entrar na assembleia. Na rádio (RDP -Açores) ainda houve alguma informação e indignação, nomeadamente de Álvaro Monjardino quando disse que, a ser verdade, 'o pacto de silêncio' era gravíssimo. NA RTP-Açores apenas uma breve referência à mudança de posição de Coelho, mas nada de imagens da votação contra, nada de perguntar à oposição porque estava tão calada. De seguida 10 minutos sobre o Estatuto dos Açores e o Presidente da República (note-se que isto se passou há sensivelmente três semanas e nada de novo tinha acontecido quanto ao Estatuto). César, questionado pela RTP Açores sobre o comportamento de Francisco Coelho, disse que não tinha tempo para "intrigas palacianas."
Ontem, depois de saber que Cavaco Silva promulgara o malogrado Estatuto, César volta a classificar o desentendimento entre partidos e Presidente como "intrigas palacianas".

Para um residente no palácio de Sant'Ana, a sinceridade não poderia ser mais genuína.
(LFB)

A América vista por Zappa em 1966

"Anscombe era, naquela altura, uma fervorosa admiradora de Kafka e, num esforço para partilhar o seu entusiasmo, emprestou a Wittgenstein alguns dos livros de Kafka. 'Este homem', disse Wittgenstein ao devolvê-los,' não escrevendo sobre os seus problemas, cria para si próprio imensos problemas [gives himself a great deal of trouble not writing about his trouble]."

Ray Monk, Ludwig Wittgenstein - The Duty of Genius, (Penguin, 1991), p.498. (Tr. LFB)
"... Se pudéssemos escolher, qual seria a melhor morte?
César respondeu imediatamente.
- Súbita e inesperada, mesmo que sangrenta e dolorosa. Seria imensamente preferível a uma morte prolongada. De entre todos os episódios que referes, Lépido, a morte de Pompeio foi a melhor. Todos os outros avistaram a sombra da morte muito antes de ela os atingir, e devem tê-la contemplado com temor, mas Pompeio manteve, mesmo até ao fim, uma esperança, ainda que frágil; e o fim chegou-lhe de forma surpreendente, ainda que chocante. É certo que o corpo dele foi profanado mas, quando me entregaram os restos, eu tratei de que fossem purificados, e de que fossem objecto de todos os ritos adequados. O lémure dele repousa em paz."

Steven Saylor, Roma, Bertrand editora (Tr. M. J. Figueiredo), p.598.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Putnam e a filosofia judaica (i) "introduction (autobiographical)"(pp. 1-8).


1) Putnam é um filósofo de tradição anglo-saxónica. Formado na U.C.L.A, diz-nos que que o seu mestre foi Hans Reichenbach, sendo muito influenciado pela forma científica de pensar (p.1). Nesta introdução autobiográfica Putnam fala de si como um filósofo naturalista mas não reducionista; no sentido que não defende que tudo possa ser reduzido a propriedades físicas. Para ele, por exemplo, "o nível da acção moral significante" (p.5) não é redutível. E há uma relação entre a realidade e a moralidade no sentido em que "realidade exige coisas de nós". Os valores, ainda que criados pelos humanos, são uma resposta às exigências da realidade e estas não são criadas por nós. "É a realidade que determina se as nossas respostas são, ou não, adequadas" (p.6) Na linha do "pragmatismo clássico" (Dewey).
Putnam escreve aqui sobre Rosenzweig, Buber e Levinas - filósofos judeus pouco valorizados na filosofia anglo-saxónica. E também sobre Wittgenstein que, não sendo propriamente judeu (o seu bisavô tornou-se cristão) é muito importante para o objectivo de Putnam: estudar, através dos textos destes quatro pensadores, a relação entre o filósofo, o religioso e o ético. Nas suas palavras:

"o que fiz, filosoficamente falando, das actividades religiosas das quais passei a fazer parte?" (p.3).

No passado operava uma separação entre o filósofo ateísta e o homem crente. Dentro da sua tradição filosófica: separar o humano/religioso do filósofo/académico.

2) Putnam estabelece semelhanças e diferenças entre as teses dos autores sobre os quais o livro versa e as teses defendidas por filósofos analíticos contemporâneos (T. Nagel, Parfit, Rorty). Será que esta aproximação entre duas formas de filosofar representa um enriquecimento filosófico? Se sim, qual?

3) Putnam é judeu e o livro procura fazer uma intersecção/depuração entre diferentes formas de vida (estudar e rezar). A sua relação com as práticas judaicas começou nos anos 70 com uma Ever Shabbat (conferência de sexta-feira à noite) e solidificou-se com a preparação, em diálogo com o rabi local, do bar mitzavh para o seu filho Samuel.
Putnam refere a meditação transcendental muito em voga nesses anos: "... Pensei: bem em vinte minutos posso rezar as orações judaicas tradicionais (daven). Porquê experimentar algo vindo de outra religião? (...) Descobri que era uma actividade transformadora" (p.3).
A questão de como lidar com o lado religioso da vida surgiu também da reflexão sobre a linguagem religiosa de Wittgenstein, em particular sobre a ideia de que "para o homo religiosus, o sentido das suas palavras (...) está profundamente interligado com o tipo de pessoa que o indivíduo religioso particular escolheu ser e com as imagens que são a fundação dessa vida individual" (p.5). O ponto importante que ajudou Putnam a reconciliar os vários níveis da sua vida foi o facto de, em 1997, ter decidido leccionar um curso de filosofia judaica, curso este que está na origem do livro.

(LFB)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

EU DIRIA QUE:

A nova secretária da educação - conduzida pela mão experiente de César - ao retirar a investigação da grelha da avaliação e ao afirmar que vai desburocratizar a escola, é mais uma a juntar ao grupo daqueles que confundem as árvores com a floresta.
Alterando um (1) item na grelha, cede aos representantes dos sindicatos (por vezes, "profissionais do sector") que devem agora estar muito felizes, mas não percebe que o mal está por toda a grelha - subjectividade e ambiguidade parecem não ser preocupações nem para eles nem para ela.
Participar em projectos de investigação é necessário em qualquer nível de docência, o que está mal é não haver tempo para o fazer. Reconhecessem isto os "lutadores" e poderiam ter exigido quatro dias de aulas e um de liberdade para investigar. Como é óbvio sem investigação individual não se pode nem ensinar nem saber (neste contexto investigar é igual a ler, falar e escrever sobre o que se lê), ah mas isso é demais para os professores. "Trabalho em equipa", isso sim. Para isso temos tempo.
O resultado, já se vê: professores todos iguais, redondinhos, sem nada na cabeça (= é sempre a mesma matéria), mas com muita dinâmica (= conversa de café) e trabalho em equipa (= uns trabalham - esteja descansado, há sempre um - e todos assinam).
A ideia de desburocratizar é óptima, não fosse ela mais uma armadilha em que a senhora educadora de infância caiu. Ainda que tal palavra funcione como calmante para os lutadores, isso implicaria uma nova maneira de olhar para a docência - basicamente reconhecer que o trabalho de um professor é dar aulas sob condições dignas (coisa que nem todos os professores desejam) - que teria de passar pela alteração profunda do Estatuto, das escolas, dos auxiliares. E não é todo o conteúdo da grelha uma grande burocracia?
Alterações profundas, não. Desburocratização, sim.
Como educadora de infância e leitora (tem que ter investigado alguma coisa, ou não?) talvez tenha tropeçado na ideia de que transformar "jardins-de-infância" em bunkers gigantes (eu conheço um (e você?) onde as criancinhas almoçam numa sala cuja única janela para o exterior é uma televisão ("é para entreter"), antes chamavam-se a estes espaços arrecadações agora: "sala multiusos") sem espaços verdes, com pouco luz, e com a gritaria de centenas de miúdos de outros níveis de ensino como pano de fundo, é algo monstruoso e que ilustra bem o desrespeito com que esta sociedade trata as suas crianças. Ah, mas isto já é outro post.
- Então o que é que, do seu ponto de vista , vai mudar? Bom, não sabemos até porque, para além de que a senhora educadora é do PS não se vê o seu "saber". Foi apresentada por César como tendo mestrado em ciências da educação. Mas também o Sr. Contente como professor universitário!
- Eu diria que: é preciso mudar para que tudo permaneça na mesma (perdoe senhor Lampedusa pela desproporção qualitativa).



(LFB)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

«nunca li outro livro que me fizesse lembrar tanto a Bíblia como O Castelo»

"Ao mesmo tempo que Rosenzweig estava a escrever Compreendendo o Doente e o Saudável - Uma visão do Mundo, do Homem e de Deus (Understanding the Sick and the Healthy, na tradução inglesa)", Franz Kafka estava a trabalhar no Castelo. Neste livro um agrimensor, K, recebe uma chamada para trabalhar num castelo; ao chegar à aldeia que é dominada pelo castelo descobre que o castelo lhe é inacessível, que nem mesmo os oficiais de mais baixa patente podem ser contactados e que a sua crença de que foi chamado não pode ser verificada. Os aldeões, que vivem sem colocar questões e estão protegidos por um sentido ingénuo de segurança, olham para K como um estranho: «não precisamos de um agrimensor, os limites das nossas terras estão bem definidos». K permanece isolado quer do castelo quer da aldeia. O seu conhecimento afasta-o das pessoas que nada sabem, mas ele não consegue trazer esse conhecimento para a vida porque a vida real, eterna e significativa está no castelo e inalcançável para o homem que tem saber. A situação trágica do homem resulta do facto de ter comido da árvore do conhecimento e de não ter comido da árvore da vida" (...) Com a expulsão do Paraíso o homem perdeu o seu nome (os heróis de Kafka usam apenas a letra inicial), perderam a linguagem (não há verdadeira comunicação), perderam o seu amor (apenas o sexo permanece); o tempo que poderia ser agora o do homem, não é outra coisa senão eternidade paralizada, distorcida e confusa. Homem (K), Mundo (aldeia) e Deus (castelo) existem, mas as suas existências não estão correlacionadas.
Rosenzweig percebeu que Kafka estava lidar com um problema bíblico genuíno e afirmou: «nunca li outro livro que me fizesse lembrar tanto a Bíblia como O Castelo». Rosenzweig encontra o homem exactamente onde Kafka o deixou. À questão bíblica de Kafka, o escritor existencialista, Rosenzweig, o pensador co-existencialista, fornece a resposta bíblica, pois ele admite a ideia bíblica de revelação (amor). Assim o homem encontra o seu lugar ao lado do seu companheiro, no mundo e perante Deus. Ele fala e falam com ele. É chamado pelo seu nome e nomeia os seres à sua volta. Ultrapassou a sua desconfiança sobre o tempo, aprendeu a esperar (o homem, diz Kafka, foi expulso do paraíso por impaciência) até que «compreende no tempo certo,» até que o tempo se torne um espelho da eternidade."

Nahum Glatzer, introdução ao livro de Franz Rosenzweig, Understanding the Sick and the Healthy - A view of World, Man, and God, (com uma introdução de Hilary Putnam), Harvard U.P.,1999, p.31-32. (tradução livre LFB)


Esta citação/tradução surge do facto de eu, após ter começado a ler o muito recente livro de Putnam, Jewish Philosophy as a Guide to Life: Rosenzweig, Buber, Levinas, Wittgenstein, (Indiana U. P. 2008) do qual espero apresentar aqui algumas notas e traduções, ter pegado de novo no pequeno livro de Rosenzweig que é, entre muitas outras coisas importantes, uma refutação da ideia de que "a filosofia pode fornecer conhecimento das essências" (Putnam, 17).

(LFB)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

"Resistir muito, obedecer pouco."
(Walt Whitman)


Aproveito que estou em greve (já lá vamos aos motivos) para escrever algumas coisas sobre o estado da educação nos Açores.
Na educação as coisas também estão como César quer.

Desde há vários anos que a política educativa tem sido feita na base do tirar muito com uma mão e, depois do diálogo com os sindicatos (depois da 'luta' como estes gostam de dizer), dar um pouco menos com a outra.

Nas escolas açorianas não há distinção entre professores titulares e professores não titulares, nem há cotas para progressão. E ainda bem, uma vez que tais distinções constituem uma violação do princípio fundamental da igualdade de oportunidades.
Mas tal não significa que por aqui as coisas não estejam mal.
Independentemente do que venha a ser a avaliação nas escolas açorianas, elas estão transformadas (e não é de agora) em espaços de ilusão:

a) a ilusão do sucesso: o que importa é o sucesso (significa passar de ano, quer se saiba quer não, ou mudar de escalão quer se saiba quer não). Mas o sucesso é uma coisa para o Marco Paulo, é uma categoria do espectáculo. Na escola o que importa é saber e agir. E quem não sabe tem que aprender; quer seja aluno quer seja professor;

b) a ilusão da igualdade: somos todos iguais, não há bons nem maus, há é 'dinâmicas' e 'interacção'. E muita ignorância à mistura. O que os professores precisam é de exigir respeito e reconhecimento da sua autoridade educativa. Uma autoridade, por natureza, nunca pode ser igual. Se os professores se afirmassem - não apenas pela via de estarem a ficar mais pobres e sem poder de escapar - mas pela via da autoridade científica; apresentando projectos realizáveis dentro da escola, investigando, melhorando e avaliando as suas práticas, criando espaços internos de discussão, criando, criando, criando uma escola como quem cria uma criança… Acima de tudo mostrando-se capazes de exigir respeito - então poderiam argumentar: alto lá, quem manda aqui somos nós;

c) a ilusão de que qualquer um pode ensinar e os que já ensinam já sabem: ser professor é ser investigador e quem não investiga não pode e, portanto, não deve, ensinar. A investigação faz-se de muitas maneiras; envolve experiência, muita leitura, discussão crítica, escrita e humildade. Nada disto é permitido nas escolas. Não há tempo, dizem. Então o que preciso é mais tempo para se poder ser professor;

d) a ilusão da avaliação: o modelo de avaliação, introduzido à pressa nas escolas, nada avalia. Para além de ter criado num só dia (por artes mágicas a que alguns chamaram 'acção de formação'!) um conjunto de professores avaliadores - pobre ilusão esta de se pensar que qualquer um pode avaliar seriamente qualquer um - baseia-se num "conjunto de evidências" que ou são subjectivas ou são facilmente manipuláveis, ou as duas coisas.Para se avaliar o trabalho de um professor é preciso ter mais conhecimentos (e não só mais experiência), ter feito investigação prolongada no domínio da pedagogia e da didáctica, ter sido avaliado por pessoas com mais sabedoria. Nas escolas há poucas pessoas com este saber, logo a avaliação dos professores não pode ser feita por pares.
A avaliação deveria basear-se em três pilares: i) uma avaliação externa dos professores feita por investigadores doutorados; ii) uma avaliação feita com base naquilo que os alunos realmente sabem ao fim um ciclo - um exame externo aos alunos que permitisse ver o que é que os professores ensinaram ou não ensinaram; e iii) uma avaliação feita com base no trabalho de investigação de cada docente - formação que deveria ser feita no local de trabalho, ao longo do ano escolar e orientada por especialistas, no fim do ano o docente apresentaria à comunidade a sua investigação;

e) a ilusão de que o importante é fazer, sem questionar, aquilo que nos pedem, por muito absurdo que isso seja. Os professores ocupam muito do seu tempo com tarefas burocráticas, repetitivas e, em muitos casos, desnecessárias, só porque sim.
Não, o que realmente importa é garantir a liberdade. Em primeiro lugar, a liberdade do professor enquanto professor: o professor é livre porque sabe. Tem um saber a transmitir, pode decidir o que fazer, como fazer, o que avaliar e deve ser livre no trabalho e na avaliação que faz - livre de politiquices e de pequenos favores, de fazer de conta, de assistir a reuniões entediantes e vazias, livre para recusar tarefas que atentam contra a sua dignidade. Mas a liberdade implica mostrar competência científica, pedagógica e didáctica - são estas as condições essenciais para uma escola séria e para garantir qualidade e independência. Isso consegue-se com estudo e requer manutenção constante e demonstração, demonstração essa que passa pela avaliação objectiva por uma entidade externa, de preferência estrangeira.

Triste país aquele que tem medo de ser livre.

É por tudo isto que hoje faço greve.


(LFB)

A política açoriana

Ao contrário das aparências, a política nos Açores está como César quer que ela esteja.
O número de deputados,  em vez de reduzir, aumentou - actualmente são 57 para 250 mil habitantes. Se as outras regiões do País seguissem a mesma insanidade seriam precisos 2200 deputados para representar todos os portugueses!
Somos uma região ultra-periférica, com especificidades próprias, dizem-nos. Pois, pois. E Vinhais não? E Jorumenha não? Só um raciocínio do mais provincianismo imaginável pode dizer que as aldeias mais recônditas de Portugal não têm especificidades próprias, mas o Corvo têm.
É claro que o problema está nos Açores e não nas outras regiões. À custa da noção de autonomia, tornamo-nos uma região despótica, anticonstitucionalista (veja-se o desrespeito pelo constitucionalismo manifestado nos últimos meses), despesista, manipuladora, e onde a política é mera propaganda e divertimento - é nestas duas últimas categorias que entram coisas como o 'diálogo' com os sindicatos, governar para os açorianos, o futuro dos Açores, etc.
O líder demissionário do PSD, num raro momento de sinceridade, disse bem: "agora vou ser deputado e vou ter tempo para jogar bowling com o meu filho" (ao que se sabe, afinal já suspendeu o seu mandato de deputado, vai gerir uma empresa, mas voltará, quando ao bowling nada de novo).

Carlos César gritou democracia por terem sido eleitas outras forças políticas, mas é brincadeira. A questão é que, dado o sistema político e eleitoral vigente, as maiorias fazem o que querem. E pior, se não houver maioria a região torna-se ingovernável. Como César tem a maioria fará o que quer. Os Açores precisam é de um órgão com poder efectivo de avaliar as leis do governo e de as recusar por votação. Com excepção das leis de Base da República (segurança e pouco mais), César e o seu clã podem legislar como muito bem entenderem que ninguém pode fazer nada.

(LFB)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

OBAMA



"Deixai que venham as consequências, isso não me importa. Nenhum homem pode sofrer em demasia, nem tombar demasiado depressa, se sofrer ou se tombar em defesa das liberdades e da Constituição do seu país".

Daniel Webster, in John F. Kennedy, Retratos de Coragem (Profiles in Courage), Esfera do Caos, p.109.

(LFB)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

ROMA de Steven Saylor

"Que mal nos fizeram os clusinos? - perguntou Breno. - O mal de terem demasiado, enquanto nós temos muito pouco! O mal de serem poucos enquanto nós somos muitos! Quanto aos deuses, é possível que os vossos sejam diferentes dos nossos, mas a lei da natureza é igual em toda a parte. Os fracos submetem-se aos fortes. Assim é entre os deuses e entre os animais, como é entre os homens. E, pelo que ouvi contar, os Romanos são iguais a nós. Vocês não andaram também a apoderar-se do que pertencia aos outros, reduzindo homens livres à escravatura, pelo simples facto de serem mais fortes do que eles e porque isso vos convinha? Bem me parecia!"
(p.285)


domingo, 28 de setembro de 2008

domingo, 3 de agosto de 2008

Cronica de uma longa viagem

Eis-me na California apos uma infindavel viagem, pautada por algumas insuportaveis paragens para ligacao. Apos 5 anos longe destas terras, algumas coisas permanecem iguais. Fale-se do preenchimento obrigatorio de dois questionarios (do tipo sim/nao) onde se pergunta, por exemplo: "Esta envolvido em actividades terroristas?" ou "Esteve de algum modo ligado ao nazismo hitleriano (ou aos seus aliados)?". A minha primeira reaccao foi o riso. A segunda: se este tipo de estrategia funciona - presumo que sim, dado que nao foi abulida desde a minha ultima viagem -, sera enorme a satisfacao dos servicos secretos! Mas com (ou sem) vontade, tudo se preenche. E rapidamente prosseguem as 'actividades ligadas ao nazismo' (a leitura d'Os que sucumbem e os que se salvam, por Primo Levi).

Chegada a Boston: finalmente o solo americano. Ao primeiro paco, sinto-me inebriada por aquele cheiro a EUA (talvez conhecido de alguns). Ao segundo, vislumbro num ecra a quase caricatural face de Larry King que, como seria de esperar diante do calendario politico, parecia discutir qualquer pormenor da aguerrida campanha eleitoral que se vive por estes lados.
Sou muito bem recebida por um bem disposto guarda fronteirico (sera esta a sua profissao?) que muito rapidamente me pergunta o porque da minha viagem, com quem, onde e por quanto tempo vou ficar; pede todas as minhas impressoes digitais; regista a minha imagem atraves de uma maquina fotografica. Mas isto sao os pormenores: o interessante foi a conversa na qual comento que o sistema (de controlo froteirico) evoluiu muito desde que ca estive da ultima vez; ao que ele me responde "It's just smoking mirrors". O que interessa nao sera entao controlar efectivamente mas mostrar que se tem tudo controlado. Esclareceu ainda que ja alguem respondeu 'sim' a famosa 'pergunta terrorista'. Fiquei muito mais aliviada.
Ainda em Boston tive o prazer de ouvir ao vivo o sotaque local, semelhante ao de Woody Allen.

A caminho de Oakland, paragem em Denver. Viagem: 4:30h.
Conclui que os americanos (a UNITED) conseguem ser mais forretas que a SATA, pois que nao serviram qualquer alimento solido durante a longa viagem.

Denver - Oakland
Os americanos sao realmente um espanto!!! Um pais que produz coisas como um 'Keep your distance bug catcher!' merece imediatamente o meu mais profundo respeito.

No proximo capitulo, a minha percepcao acerca da campanha presidencial.


(P.S. Devido a constrangimentos informaticos, nao foi possivel apresentar os acentos e cedilhas contestados pela lingua portuguesa)


DO

quarta-feira, 16 de julho de 2008

"Os bons morrem jovens, diz-se. Também se diz que o jovem artista realmente dotado ganha uma reputação que, tivesse ele vivido para lá da juventude, seria muito maior." Martin Williams in: Faz sentido dizê-lo a jovens de 16 anos? É uma boa maneira de introduzir um disco de Eric Dolphy? Sim, sim.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Três ideias liberais e uma relação contingente entre liberalismo e democracia

O constitucionalismo pressupõe, na sua construção, o liberalismo. Apresento a seguir – arriscando-me a simplificar e a uniformizar demasiado aquilo que, por natureza, é um campo de contestação[1] – uma explicitação sucinta das principais teses que caracterizam as doutrinas liberais[2].

Em primeiro lugar temos a tese do ‘atomismo individual’ (Holmes, 1993, p. xii): a sociedade é constituída por indivíduos autónomos com interesses, desejos e crenças próprios (formados em privado e muitas vezes incompatíveis com os interesses de outros indivíduos), e esses mesmos indivíduos são os únicos com direito de se prenunciar sobre os seus interesses e suas implicações. Acredita-se que os indivíduos são racionais, no sentido de poder escolher os meios para realizarem os fins que escolheram; são livres, no sentido de poderem escolher a sua própria concepção do bem; e são responsáveis pelas suas acções, no sentido de por elas responderem. Ao conjunto de indivíduos com interesses, desejos e crenças muito diversificados pode atribuir-se a designação de sociedade plural. Esta tese é, como veremos, negada, ou alterada, pela democracia deliberativa.

A 2ª tese liberal é expressa pela ideia do indivíduo anteceder a formação do social e do político; antes de mais somos indivíduos concretos e definidos, só por contingência vivemos em sociedade e participamos na tomada de decisões políticas. A política justifica-se pela necessidade de regular, por exemplo através de um conjunto de regras norteadas por uma constituição, os conflitos de interesses que possam existir dentro da sociedade plural. Para impedir que um indivíduo, ou grupo de indivíduos, tiranize os outros através da imposição da sua concepção de bem, é necessário estabelecer: (i) um conjunto de direitos que protegem os indivíduos do estado e dos outros cidadãos; (ii) um conjunto de obrigações relativas ao respeito por esses direitos; e (iii) um conjunto de deveres para com o governo que é a garantia daqueles direitos (Dryzek, 2002, p.9). Esta tese em conjunção com a primeira, pode ser usada para explicar a distância e o desinteresse político dos indivíduos nas democracias ocidentais. A constatação deste facto, pode justificar a exigência – por parte da democracia deliberativa - de uma empenhada participação política. Participação esta que seria, de certa forma, negligenciada e potenciada pelo liberalismo.

A 3ª tese liberal estabelece a primazia do direito em relação ao bem. O indivíduo ganha uma protecção de direito em relação a concepção de bem que a comunidade possa ter. Por isso, toda a imposição moral que dessa concepção derive deve ser considerada ilegítima. Em termos políticos os interesses da sociedade com um todo, ou de um grupo de indivíduos, não têm mais valor do que os interesses de um único indivíduo. Anseia-se mais pelo pluralismo político – estabelecer uma ordem política onde as diferenças morais e materiais possam coexistir; do que pelo universalismo – encontrar a verdade acerca do que é o melhor para todos. Outra forma de dizer isto – porventura mais rawlsiana (veja-se Rawls, 1996, pp. 173-176)[3] – é afirmando que se pretende encontrar condições de separação entre a política – encontrar uma concepção política de justiça que se aplique, através da estruturação das principais instituições políticas, apenas à vida política dos indivíduos e que seja aceite por todos independentemente das doutrinas inclusivas que defendam; e a moral – entendida como o conjunto das várias e incompatíveis doutrinas acerca do bem individual. Esta separação não implica que a esfera política seja moralmente neutra, pelo contrário ela inclui ideias morais liberais muito importantes, como a garantia de direitos e liberdades, a separação de poderes, a discussão e avaliação pública de ideias políticas. Quer dizer que a concepção política, embora não sendo uma doutrina inclusiva, é também normativa e tem “um ideal intrínseco” moral baseado naquelas ideias (Rawls, 1996, p.xliv).

Dado que nenhuma destas teses faz referência à democracia como forma de justificação e controlo do poder através de uma escolha popular feita entre cidadãos iguais, podemos facilmente afirmar que o liberalismo não tem que ser democrático e que até se pode dizer que ele surge para proteger a liberdade dos cidadãos de alguns perigos que podem resultar de maiorias democráticas opressivas. (Historicamente o liberalismo nasceu separado da democracia e só no séc. XX se introduziu o conceito de ‘democracia liberal’.)

NOTAS:

[1] Sobre as várias diferenças e discordâncias que existem entre as doutrinas liberais veja-se a Introdução e o 1º capítulo do livro de Stephen Holmes, Passions & Constraint, Chicago U. P., 1995.
[2] Que são diferentes das sociedades liberais, por vezes a não-distinção entre sociedades liberais e doutrinas liberais tem levado ao surgimento de confusões e de críticas incorrectas. Cf. Holmes, 1993, p.xiv-xvi.

[3] Pretendo apenas apresentar três ideias liberais que suportam a democracia constitucional deliberativa liberal. Sendo que a ideia de consenso sobreponível a que recorro é apenas introduzida como um exemplo decorrente da terceira tese liberal. Ainda que eu faça referência a Rawls, não pretendo apresentar a definição da concepção liberal da justiça como equidade, nem explicar a coexistência, nas sociedades democráticas mais ou menos razoáveis, de diferentes concepções liberais acerca da justiça (cf. Rawls, 1996, p.xlviii).

referências bilbiográficas:
HOLMES, Stephen, (1993) The Anatomy of Antiliberalism, Harvard U. P.;
HOLMES, Stephen, (1995) Passions & Constraint, Chicago U. P.;
RAWLS, John, (1996, paperback edition) Political Liberalism, New York, Columbia University Press.

Luis Filipe Bettencourt (2005)

terça-feira, 17 de junho de 2008

A democracia deliberativa e a educação

1. DEMOCRACIA DELIBERATIVA: O QUE É?

A ideia fundamental da democracia deliberativa é a reciprocidade entre indivíduos livres e iguais. A tese é que, numa democracia, os cidadãos, e os seus representantes, devem apresentar, uns aos outros, justificação pelas normas a que, colectivamente, estão submetidos. Deste ponto de vista, uma democracia é deliberativa na medida em que os cidadãos e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para leis que a todos obrigam, num processo contínuo de justificação mútua.

Uma democracia não deliberativa é aquela democracia que trata os seus cidadãos apenas como objecto da legislação, apenas como sujeitos passivos a governar, em vez de os encarar como cidadãos que fazem parte da governação através da aceitação ou rejeição das razões que eles e os seus representantes apresentam para justificar as leis e as políticas que a todos dizem respeito.

A democracia deliberativa sublinha a importância de uma educação pública que desenvolva, nos educandos e nos educadores, as capacidades conducentes a uma futura deliberação entre cidadãos livres e iguais.

Deste ponto de vista, uma escola será deliberativa na medida em que os seus agentes e os seus representantes responsáveis oferecem uns aos outros razões moralmente defensáveis para as regras que todos devem seguir.


2. UM CASO PRÁTICO: FUMAR, OU NÃO FUMAR, NAS ESCOLAS?

Imagine-se uma escola secundária onde alguns professores e alguns funcionários fumam cigarros na sala de fumadores, e alguns alunos fumam cigarros nos espaços exteriores da escola. Assumindo que há alguma discordância quanto a estes actos serem executados em espaços públicos educativos, como lidar com a situação? Fará algum sentido proibir simplesmente o acto? Será a questão resolúvel e justificável por decreto? Será de referendar internamente a hipotética proibição do fumo nas escolas? Será possível decidir por consenso? Como deve ser feita e gerida a aplicação da putativa solução? Como devem ser as diversas vozes ouvidas? Que influência terá a discussão na solução a adoptar?
O que fazer com o problema do tabaco nas escolas? A escola como elemento formativo fundamental deveria ser exemplar na sua proibição do uso do tabaco no espaço escolar (à semelhança do que acontece com outras substâncias nocivas, como o álcool). Todavia, uma parte interessa na matéria – os professores funcionários e alunos fumadores – defende o direito a fumar o seu cigarro. Por esta razão a simples proibição por lei – àlias já existente no nosso país – tem-se revelado ineficaz, talvez por ser pouco deliberativa, persistindo o problema de saber o que fazer. A questão tem elementos factuais: saber e divulgar os efeitos nocivos do tabaco; saber até que ponto fumar nas escolas em locais reservados para o efeito constituirá, ou não, um mau exemplo para os alunos. Mas também contém elementos morais: supondo que admitimos como razoável a existência de espaços reservados a fumadores, deverão os alunos ter o seu espaço reservado para fumarem? Se não porquê? Por serem menores? E os maiores de dezoito anos poderão fumar? E se sim onde? E se for de todo proibido fumar no espaço escolar, como resolver o problema dos fumadores inveterados? Negar-lhes a possibilidade de fumarem no local de trabalho não constituirá um atentado à liberdade e até à dignidade? O estado, e a escola como um todo, pode desejar proteger as pessoas, mas seria necessário discutir até que ponto queremos e aceitamos um estado paternalista e moralista que impõe às pessoas (aos professores e aos funcionários) comportamentos que elas não querem nem desejam para si, embora possam desejar para os outros. Não são raros os fumadores que defendem a tese do “faz o que eu digo, não faças o que faço”.
A democracia deliberativa não oferece uma solução. O que apresenta é uma forma de discutir a questão – com tempo para reflectir e de forma organizada – tentando fazer ouvir as razões de todas as partes (publicidade) e pedindo-lhes que justifiquem as suas ideias com razões que os outros possam aceitar (reciprocidade). A democracia deliberativa – uma vez que assume que as preferências das pessoas só podem ser alteradas através de um processo de deliberação mútua - não pode apresentar a resposta. A ideia é por as pessoas a pensar e a discutir, não apenas o que é melhor para si, mas o que é melhor para o grupo (neste caso a escola) como um todo. Devem, para isso, participar na tomada de decisão, na qual partilham as suas ideias, discutem em conjunto e, com alguma sorte, poderão atingir um acordo generalizado. A ideia principal é que os argumentos apresentados por cada uma das partes serão, de alguma forma, limitados pelo desejo de alcançar um acordo, o que requer que as partes recorram a princípios gerais em vez de apelarem simplesmente ao seu interesse particular. Deste modo, a discussão, e não a votação, torna-se o atributo principal das decisões democráticas. Por isso, a concepção de um espaço e de um tempo para as pessoas poderem falar e discutir em grupo sobre os assuntos que lhes dizem respeito, e antes das decisões serem tomadas, torna-se fundamental.

Luís Filipe Bettencourt (2005)

UMA DEFINIÇÃO MÍNIMA DE DEMOCRACIA.

“Por mais pós-modernas que sejam hoje as democracias, por mais difusos que sejam os direitos individuais, por mais complexa que seja a governação e o processo de tomada de decisões, por maiores que sejam as restrições impostas pela gestão da economia, há coisas que numa democracia devem permanecer eternas e imutáveis, sob pena de se viver apenas numa aparência de democracia. Deve haver eleições livres, o que pressupõe igualdade de condições à partida e real possibilidade de alternância do poder; deve haver uma fiscalização constante dos actos do poder, a qual não se esgota nem é legitimada simplesmente pelas eleições; deve haver uma justiça independente do poder político, mas não irresponsável perante os cidadãos; e deve haver uma imprensa livre, cujos atropelos e abusos têm de ser reprimidos pelo poder judicial. Isto é o "core business", o mínimo de um regime democrático. Aceitar menos que isto é resignar-se com uma democracia que é formal nos seus aspectos exteriores, mas que ignora a substância das coisas. “

Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Jornal Público, Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003

O poder como opressão: uma introdução a Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell.

Um dos temas que se podem desenvolver a partir da leitura desta obra é o tema da opressão injusta que o Estado totalitário exerce sobre as pessoas. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro apresenta-se como um tríptico (à semelhança de A Metamorfose de Kafka - sobre as diferentes nuances e leitura do número 3, ver Nabokov, Aulas de Literatura, Relógio d’Água p.325). Olhando de relance para cada uma das partes poderemos anotar diferentes aspectos da opressão.
Na primeira parte, Orwell dá-nos uma visão do mundo onde Winston – a personagem principal – vive imerso e sob total controlo. Winston e os demais habitantes de Oceânia vivem quase totalmente controlados pelo telecrã; nalgumas coisas tão parecido coma a TV do nosso mundo mas que, ao contrário desta, transmite e capta imagens. O telecrã é um dos meios privilegiados para dar corpo ao Big Brother, essa figura que representa a unidade e, simultaneamente, os perigos que ela contém: “(…) uma nação de guerreiros e fanáticos marchando em frente na mais perfeita unidade, pensando todos a mesma trezentos milhões com caras iguais (Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, Antígona, 1991, p.8o)”. Winston consegue encontrar um canto do seu quarto que talvez não seja captado e aí escreve o seu diário secreto. O pensamento surge como forma de libertação, incluindo o sonho/pesadelo que na obra é outra das formas libertadoras a que Winston recorre. Ele sonha com a sua mãe e irmã, sonha com o tempo antes da guerra, sonha com um outro espaço onde tudo seria mais belo e mais verdadeiro.
As pessoas vivem controladas pelas crianças que, tendo sido desde muito cedo educadas para denunciar os crime-pensantes (a verdade, independentemente das consequências, é das crianças), estão sempre prontas a apontar um suspeito. Controlados também pelas pessoas que se encontram à sua volta. Qualquer um pode denunciar outro e, por isso, qualquer um pode ser denunciado. Aqui nunca se sabe em quem confiar. Winston dúvida de Júlia e chega a desejar matá-la. Depois ama-a e deseja nunca traí-la. Winston confia em O’Brien e pensa, sem nenhuma justificação plausível que não “secretos devaneios, baseados em sonhos” que ele é também um “conspirador político” (174). Depositando a sua confiança num camarada confessa-se, sem saber, ao seu executor (na 3ª parte O’Brien usará essas mesmas palavras de Winston para lhe mostrar que, ao contrário do que afirma, ele não é nenhum anjo, cf. pp. 177 e 271):

“(…) somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do SOCING. Somos crimepensantes. E também somos adúlteros. Conto-te isto para ficarmos à tua mercê. Se quiseres que aprofundemos o compromisso, estamos ao teu dispor.” (175)

Num dos momentos mais irónicos do livro:

“Estão dispostos a enganar, falsificar, fazer chantagem, corromper o espírito das crianças, distribuir drogas que provoquem dependência, fomentar a prostituição, espalhar doenças venéreas… a fazer tudo o que seja susceptível de desmoralizar e enfraquecer o poder político?”

A resposta de Winston é sim. E está pronto para muito mais, desde maltratar crianças até à mutilação do corpo e ao suicídio; ambos estão prontos para tudo. Até, se tal for necessário, obter uma nova identidade. O leitor não poderá deixar de se interrogar sobre o que distingue então Winston do seu carrasco. A diferença está em que um é capaz de fazer tudo para manipular e controlar as pessoas (o poder pelo poder) e Winston é capaz de fazer tudo para acabar com o partido (o poder pela liberdade). São iguais, do ponto de vista das consequências, Do ponto de vista dos ideais não podemos, tal como Winston não pode, aceitar o totalitarismo. Compreendemos até que se possam realizar crimes para cumprir esse objectivo maior. Haver gente, como Winston e Júlia, capaz de realizar todos esses actos transmite-nos alguma segurança, pois significa a afirmação de que, em vez da resignação silenciosa, a luta contra o grande ditador é sempre possível. Felizmente, na vida real e no livro, nem todos são colaboradores. Winston e Júlia só não estão dispostos a separarem-se definitivamente. Júlia é muito mais assertiva na sua resposta. O amor como uma das poucas coisas autênticas a que ambos se podem agarrar. No fim da história caberá a cada leitor saber até que ponto é esse sentimento autêntico. Controlados também pelo passado, pela ausência de memórias fidedignas; todo o passado é completa e diariamente alterado para servir os propósitos do partido. Controlados pela guerra constante. Controlados pela própria língua que, em fase de substituição pela novilingua, deixará de ser uma forma de riqueza e diversidade. A novilingua, limitando o número de palavras, controla e limita a possibilidade de certos pensamentos serem sequer concebidos. Haverá alguma forma de sair dessa prisão?
Na primeira parte é-nos também dada uma visão estratificada da sociedade. Uma sociedade dividida em três grupos: o partido interno – os seus membros viviam melhor do que os outros, vestiam castanho e eram responsáveis privilegiados. Eram, por exemplo, os únicos que podiam desligar, ainda que só por alguns minutos, o telecrã. O partido, composto por funcionários que vestiam de azul e que mantinham a grande máquina torturante em funcionamento. E, por último, os proles que vivem à margem do partido. Vivem na pobreza e na ignorância, é esta a forma que o partido tem de os controlar. Winston chega a acreditar que a salvação só poderá estar nos proles, só eles poderão rebelar-se contra as forças agonizantes da sociedade totalitária. Não é nada claro que assim seja até porque é um prole que denuncia Winston e Julia à polícia do pensamento. A fome e a ignorância sempre geraram bons colaboradores.

A segunda parte, em contraste total com a primeira, acontece sob o signo da luz, da beleza, da esperança e do sonho/realidade. Da escuridão, da fealdade, da resignação e da irrealidade – num certo sentido, tudo é irreal em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, ou não será? – passamos para a luz. Através da descoberta do amor, amante e amado são levados a acreditar que a única verdade possível está nos sentimentos, no coração, nos instintos mais básicos que o Partido tão veementemente tenta suprimir. O amor parental não é permitido – os filhos são separados dos pais; e existe uma forte repressão sexual (só a prostituição é tolerada por ser uma forma de escape e ao mesmo tempo uma forma de descobrir quem tem problemas com os seus instintos). É nos capítulos centrais da 2ª parte que o leitor é levado, por um lado, a crer que alguma saída há-de ser possível para Winston e Julia e que alguma saída há-de ser possível para a própria situação em que cada um de nós, efémeros leitores, se encontra; por muito boa que seja, terá sempre algo de irreal, de manipulado e de opressivo. Veja-se, para substanciar a crença na saída, o capítulo 8, onde sabemos que “estamos sós” (174) o que não deixa de ser surpreendente vindo de O´Brien, o homem em quem eles depositam confiança e onde se afirma que “a nossa única vida autêntica está no futuro” (181).
Por outro lado, o leitor é também colocado perante a pior hipótese: a de não haver saída. No capítulo 5, várias hipóteses são colocadas perante o acto de liberdade que ambos desejam realizar – o de se encontrarem secretamente, negando deste modo todos os postulados da sociedade tal como ela foi apresentada na primeira parte. Júlia acaba por dizer: “o que me interessa somos nós” (161); tese subjectivista que em qualquer tempo e em qualquer situação encontrará sempre os seus seguidores. A ideia de que “só os sentimentos contam” deixa os filósofos estarrecidos de tão crentes que são no poder da razão, na universalidade da verdade e na contingência dos sentidos. Nestas páginas centrais do livro há uma inversão de categorias – o irreal e fugidio torna-se o mais real e duradouro. Enquanto o mundo que os rodeia e as suas categorias foram já transformados na maior das farsas, os sonhos de Winston tornam-se realidade; o que de mais verdadeiro há na sua história pessoal. Contudo, ele sabe – são também os seus sonhos o veículo dessa revelação –e confessa-o a Júlia, que perante situações de miséria extrema, como as resultantes da fome e da guerra como as que ele enquanto criança teve que suportar, é o egoísmo que vem ao de cima – quer seja o egoísmo que o leva a roubar a única comida disponível que a mãe tinha para dar à irmã moribunda, quer seja o egoísmo de não suportar mais a dor da tortura do quarto 101.

Na terceira e última parte é a questão da liberdade interior – desde o início o refúgio de Winston - que é posta em causa. Tendo sido traídos por O’Brien, o que se segue é a tortura (em todos os sentido) como forma última de opressão. A morte seria um bem demasiado grande para poder ser oferecida, sem mais nem menos. Primeiro a limpeza, a purificação mental e, por fim, a negação da mais ínfima liberdade de pensamento. Depois de várias sessões, mas antes da ida ao quarto 101, Winston reconhece que 2+2 tanto pode ser 4 como 5 ou 3. Não há verdades absolutas. Essa é a primeira vitória sobre a liberdade de pensar. No entanto, Winston sonha (sempre o sonho como veículo da libertação) com uma bala que entra pelo seu cérebro e engendra, para esse momento que há-de chegar, a forma de morrer livre:

“Percebeu pela primeira vez que, a querer guardar um segredo, se via obrigado a escondê-lo até de si próprio. (…) daí em diante não lhe bastaria os pensamentos certos, os sonhos certos; tornava-se imperioso mostrar também os sentimentos certos, os sonhos certos. E entretanto guardar o ódio bem fechado dentro de si, como um corpo sólido que fizesse parte da sua pessoa e no entanto não estivesse em contacto com o resto de si, como uma espécie de quisto. (…)” (281/2)

Só “dez segundos” antes da bala atingir o seu cérebro é que ele “operaria uma revolta no seu interior” e libertaria o seu ódio: “Morrer a odiá-los: eis a liberdade.” (282). Depois de se submeter à vontade do Partido e esperando a morte Winston sente que, apesar de ter confessado tudo sobre a sua amada, não a traiu porque nunca deixou de a amar. Mas depois do quarto 101 – “o pior do mundo - continuou O’Brien – varia de indivíduo para indivíduo” (284) - ficamos na dúvida se a liberdade de amar Julia e a liberdade de fazer despertar o ódio antes de morte, coisas tão íntimas e tão difíceis de controlar, serão ainda uma possibilidade para Winston. O sinal de que algo foi ultrapassado no interior de Winston é dado pela traição ao amor que, como já vimos, tinha sido apresentado como real: “façam isto à Julia! Façam isto à Julia! A mim não!” (289) Depois disto podia-se dizer que foi o medo que nos fez dizer tal coisa. Que foi uma mentira feita para salvar a pele. Mas tal disfarce não funcionaria com O’Brien. “Algo morrera dentro dele: queimado, cauterizado” (291) E, no último encontro com Julia:

“- Só queremos saber de nós próprios – repetiu ele.
- Depois disso, jamais sentimos o mesmo por essa outra pessoa.
- Não – disse ele, já não sentimos o mesmo
” (293)

Vence o egoísmo? Será a afirmação final de Winston: “Amava o grande irmão” (298), uma farsa? Ou será antes a prova de que Winston foi finalmente vencido? Como interpretar as “duas lágrimas” que Winston verte antes de afirmar o seu amor ao grande irmão? São a prova do amor? Ou o sentimento derivado da consciência de que perdeu a sua luta? Dado que no final Winston, num “sonho feliz”, vê a desejada bala penetrar-lhe o cérebro mas em vez de ódio o que vemos é amor ao grande irmão, a minha leitura é de que os bons perderam. Mas as conclusões a retirar ficam a cargo de cada leitor que deverá ler as últimas páginas do livro com redobrada atenção.


Luis Filipe Bettencourt (Maio de 2008)

O culto de Che, por Paul Berman

"O culto de Che Guevara é algo digno de nota na frieza moral do nosso tempo. Che foi um totalitário. Não conseguiu nada mais do que o desastre. Muitos dos primeiros lideres da revolução Cubana favoreciam uma direcção democrática ou social democrática para a nova Cuba. Mas Che era um defensor da facção dura pro-soviética e a sua facção ganhou. Che presidiu aos primeiros esquadrões da morte da revolução Cubana. Ele fundou o sistema dos "campos de trabalho" em Cuba - o mesmo sistema que, por fim, serviu para encarcerar homossexuais, dissidentes e vítimas do SIDA. Conseguir matar-se e matar muitas outras pessoas era algo central na imaginação de Che. No famoso ensaio onde apelou para "dois, três, muitos Vietnames", também falou de martírio e conseguiu escrever uma série de frases arrepiantes: "O ódio como um elemento de luta; ódio inquebrável pelo inimigo que transporta um ser humano para lá das suas limitações naturais tornando-o numa máquina de espalhar a morte que seja efectiva, violenta, selectiva e de sangue frio. É nisto que os nossos soldados se devem tornar..." - e por aí adiante. Che foi morto na Bolívia em 1967, liderando um movimento de guerrilha que não conseguiu recrutar um único camponês boliviano. Mesmo assim conseguiu inspirar dezenas de milhar de latino-americanos de classe média a sair das universidades e a organizar movimentos de guerrilha insurgentes. Estas insurgências também não conduziram a nada, a não ser à morte de dezenas de milhar de pessoas e ao atraso da causa democrática na américa latina - uma tragédia em grande escala.

O presente culto de Che - as t-shirts, os bares, os posters - conseguiu obscurecer essa terrível realidade. (...) Che foi um inimigo da liberdade e, mesmo assim, foi erigido como um símbolo da liberdade. Ajudou a estabelecer, em Cuba, um sistema social injusto e foi erigido como um símbolo de justiça social. Defendeu a antiga rigidez do pensamento latino-americano, numa versão marxista-leninista, e tem sido celebrado como um livre-pensador e como um rebelde. (...)

Berman, Paul, The Cult of Che Don't applaud The Motorcycle Diaries, (2004) in http://www.slate.com/ (tr. de LFB, Junho de 2008)


PS: Este obscuro culto a Che nas palavras de Hugo Chavés é assim: "Che viveu como Cristo e morreu como Cristo".

Tudo muito recentemente numa entrevista (rtp1) onde discursos inacreditáveis e algumas falsidades foram proferidas perante a passividade do entrevistador Mário Soares (um 'espiritualista laico', nas palavras do próprio).


(LFB)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Dicionário do absurdo fascinante

Determinados - como se poderá comprovar também pelo seu website - no combate às teorias absurdas que abundam nas academias, escreveram um dicionário cheio de ironia e com referências cruzadas que, divertindo, dá que pensar.
Eis algumas entradas:

Illness
Aquilo que os homens fazem às mulheres, o Ocidente a todos os outros, os invasores aos povos indígenas, os gatos aos ratos, o capitalismo a todos nós, comedores de carne... oh, já apanhaste a ideia. Veja-se Medicina.

Knowing

Algo em que as mulheres são especialistas.

Knowledge

Uma convenção humana sujeita à moda e, tal como as roupas, os sapatos e os cortes de cabelo, a tornar-se antiquada.

Medicine
Má quando ocidental, boa quando oriental ou alternativa. (...) Na sua forma ocidental, a medicina é uma disciplina objectificante e opressiva concebida para manter a ilusão de que as maleitas, a doença e a morte são coisas más às quais se deve resistir. Claro que isto é uma absurdo ...

Story

Aquilo que todas as coisas são, de facto, quando as aprofundas. A ciência, a história, a religião, a matemática, a engenharia - é tudo uma estória.

(tr. LFB)

domingo, 6 de janeiro de 2008

Bonobos e o puritanismo americano

...
"Descobri que protestar acerca dos "Americanos" não é um passatempo europeu muito simpático, mas é impossível discutir os bonobos sem dizer alguma coisa sobre o puritanismo. Embora eu tenho vivido nos EUA durante duas décadas e tenha uma carinho genuíno pelo país e pelas suas gentes, nunca me acostumarei à relação entre o sexo e o pecado. A culpa e o sofrimento - já para não mencionar a hipocrisia - que essa associação cria ultrapassam-me. De bom grado evitaria este tópico se não fosse pela questão que persistentemente surge quando as pessoas ouvem pela primeira vez falar de bonobos - nomeadamente, porque é que esta espécie não é mais amplamente conhecida. A resposta está, em parte, no facto de eles nos recordarem um aspecto de nós próprios que tentamos controlar a toda a força. Em vez de serem trabalhadores e castos os bonobos levam vidas promíscuas e hedonistas. Se eles são os nossos parentes mais próximos, o melhor é mantê-los afastados!
Ora, eu conheço muitos americanos que têm uma mente aberta no que a questões sexuais diz respeito mas, infelismente, a sua sociedade não é aberta. Chamo a isto a primeira lei do Puritanismo: o todo é mais puritano do que as partes. (...) A segunda lei é que a repressão sexual é mais difícil de ver do lado de dentro do que do lado de fora. Os americanos estão habituados a viver num país onde as casas de banho se chamam «restrooms», onde nem mesmo os ginecologistas observam os seus pacientes nus, onde se pode ser presa por amamentar em público, onde as «pinups» aparecem em fatos de banho e onde os comediantes chocam as audiências, provocando risos convulsivos, mencionando apenas o nome de uma parte tabu do corpo. Eles não se dão conta o quanto tudo isto parece estranho quando visto do exteri0r. Uma excepção possível está nos americanos que viajaram para o estrangeiro e que poderão ter visitado uma casa de banho Japonesa onde é obrigatório retirar toda a roupa mesmo na presença do sexo oposto. P0dem ter visto a prostituição livre e aberta em Amesterdão e Hamburgo ou ter encontrado pessoas que, no que toca à vida sexual dos seus lideres, simplesmente encolhem os seus ombros."
(Waal, The Ape and the Shushi Master, Basic books, 2001, p.134-135 tr. de LFB)

The Ape and the Sushi Master, de Frans de Waal

Um livro que revoluciona a forma como os seres humanos se pensam a si próprios e o modo como vêm a sua relação com os outros animais.

O livro está organizado em três grandes secções: uma dedicada ao modo como os seres humanos vêem os outros animais. Outra parte é sobre a questão de saber se a cultura existe na natureza ou se é apenas pertença dos seres humanos. Será a cultura aquilo que permite separá-los das restantes espécies? Não, é a resposta de Waal. Inúmeros exemplos de cultura não-humana são discutidos, desde os macacos da ilha de Koshima no Japão que lavam/salgam as batatas doces na praia passando pelos chimpanzés que aprendem entre si a quebrar sementes de palmeira, até aos pássaros (blue tit) que aprendem entre si a abrir o selo de alumínio das antigas garrafas de leite para beberem a nata. A definição de cultura usada é a seguinte: cultura é todo "o conhecimento e os hábitos adquiridos de outros " (p.6).

Uma terceira parte do livro é reservada para a discussão da natureza humana e, em particular a questão do altruísmo vs egoísmo.
Tentarei, futuramente, dar mais informações sobre o livro.
(LFB)