domingo, 27 de novembro de 2011

sábado, 26 de novembro de 2011

"Durante os piores momentos da seca da década de oitenta, o meu pai possuía cerca de trinta cabras. A origem do rebanho fora uma cabra com uma pata partida que vira no mercado. Comprara-a para lhe tratar do ferimento, mas, quando a pata ficou curada, achou que devia ter companhia e comprou um bode. Partindo daí, chegou às trinta, e não lhe trouxeram nada mais além de trabalho árduo e mágoa.
O período da seca foi terrível para quem viveu numa quinta. Vacas e ovelhas eram abatidas e enterradas em valas porque não havia nada com que as alimentar. (...) Quando o meu pai ficou sem outra forma de alimentar as cabras, cortou a erva na berma da estrada com uma gadanha (...)
Ocasionalmente, matava uma cabra para comer, mas matava-as sobretudo para alimentar os cães. Tinha muito pouco dinheiro para comprar carne e tanto ele como a mulher viviam das suas pensões de reforma, uma boa parte das quais era usada para pagar as contas dos veterinários. Quando a minha filha Eva soube que por vezes matava as cabras, sentiu-se incomodada. Sendo uma amante dos animais, gostava de visitar o meu pai porque havia quase sempre pintos, patos pequenos ou bezerros. Por vezes, um deles estaria abrigado na cozinha, doente e a precisar de calor. «Como consegue fazê-lo?», perguntou-me. Referia-se à forma como ele, entre todas as pessoas, podia ser capaz de tal acto quando se preocupava tanto com o seu bem-estar. Perguntei-lhe se conhecia ou ouvira falar de alguém que fosse tão bondoso para os animais como o seu avô. Respondeu-me que não.
Não pretendi que esta conversa com Eva respondesse às questões que lhe ocorressem sobre se era ou não justificado matar animais para comer. No entanto, esperei que aprendesse alguma coisas sobre o que significa matá-los. Quis saber como era possível que o avô pudesse preocupar-se tanto com os animais e ao mesmo tempo matá-los, matar os mesmos animais por que trabalhara tanto e pelos quais prejudicara a sua saúde. A sua primeira reacção foi pensar que o facto de matar animais mostrava que se importava menos com eles do que pensara. A pergunta que lhe fiz fê-la perceber que tal não abalava necessariamente a compaixão que sentia por eles.
Instintivamente, Eva soube que não se podia limitar a dizer que, se o meu pai matava animais, então, a sua compaixão por eles não poderia ser genuína. Afinal, de que forma aprenderemos a reconhecer a compaixão e os seus limites se não for através de uma reflexão sobre exemplos concretos? Creio que foi a comunhão do meu pai com o mundo natural, a piedade que sentia pelos males que lhe eram infligidos pelos seres humanos, que fez com que o seu exemplo marcasse Eva. Mas, para que a autoridade do exemplo fosse justificada, a sua compaixão teria de ser complementada por uma compreensão do que significa matar um animal.
Existem pessoas maravilhosas, pessoas cuja compaixão é tão profunda como era a do meu pai, que acham moralmente impossível matar um animal, sendo essa percepção inseparável da consciência do que significa matar um animal para comer. No entanto, o seu exemplo não poderá, em minha opinião, ser aplicável ao meu pai. Não conheci ninguém que apreciasse de igual forma a generosidade com que os animais se entregam a nós e que sentisse maior gratidão pela graça que conferem às nossas vidas. Por vezes, consideramos algo moralmente impossível, mas não pensamos que as pessoas que consideram a mesma coisa possível estejam enganadas ou que possuam morais deficientes. Até mesmo exemplos de autoridade inegável e pura podem atingir-nos de formas diversas. Portanto, acerca deste asunto, qualquer coisas que possa dizer será sempre subjectiva."

(Raimond Gaita, O cão do filósofo, (tr. R.C.) Casa das letras, 2007, pp. 217-218.)


Assim termina este livro sobre a nossa relação com os animais e sobre a forma como atribuímos "sentido" (meaning, no seguimento do Wittgenstein das Investigações Filosóficas) às relações complexas que estabelecemos com pessoas e animais. O autor defende que a moralidade da nossa relação com os animais é secundária em relação ao sentido que construímos no mundo. Sendo que este sentido varia muito com as experiências das pessoas, com as suas emoções e com aquilo que vai no seu coração, com a sua cultura. Por conseguinte, não pode haver uma resposta única à questão de como tratar os animais. Gaita coloca-se, no debate sobre a ética animal, numa posição extravagante, uma vez que é contra a retórica dos direitos que considera uma ilusão. Acredita que as palavras que usamos devem transportar a força da obrigação de uma certa acção, caso contrário, de nada valem. Defende que "quase tudo o que a vida tem de importante ocorre no reino do sentido" (p.115). Parte da nossa compreensão desse sentido é possibilitada pela literatura, por essa forma de usar a linguagem "na sua plenitude" (Gaita cita Cora Diamond, uma autora a que também é preciso dar atenção) onde forma e conteúdo são inseparáveis, mas não é por isso, defende também o autor, que o texto literário deixa de ter valor cognitivo.
Apesar de considerar o livro interessante e as suas ideias valiosas - sobretudo porque parte de uma concepção ética baseada na experiência, fundamentada na linguagem e e na literatura - foi algo penoso lê-lo e isto devido à fraca tradução que, parece-me (não consultei o original), torna muitas passagens do livro dificilmente compreensíveis (como se comprova pelo texto acima transcrito). É um daqueles livros de filosofia que é facilmente estragado por uma má tradução. Começando logo pelo título que em inglês é: The Philosopher's Dog: Friendships with Animals. Em português não aparece a 'amizade', escondendo-se assim  a tónica que o autor coloca na questão das relações para explicar a moralidade. É pena.

A melhor citação que o livro contém é a seguinte, retirada da autobiografia de Pablo Casals:

«Ao longo dos últimos oitenta anos, comecei cada dia da mesma forma. Não se trata de uma rotina mecânica, mas de algo essencial à minha vida quotidiana. Sento-me ao piano e toco dois prelúdios e fugas de Bach. Não consigo conceber não o fazer. É uma espécie de bênção da casa. Mas não é esse o único significado que lhe atribuo. É uma redescoberta de um mundo que tenho tido a felicidade de integrar. Preenche-me com uma percepção da maravilha da vida, com um sentimento de incrível assombro perante a condição humana...
Não houve um único dia na minha vida em que não tenha olhado com espanto renovado para o milagre da natureza» (p.145)

(LFB)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)

MEIO DIA

Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado
Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra 

A casa compõe uma por uma as suas sombras
A casa prepara a tarde
Frutos e canções se multiplicam
Nua e aguda
A doçura da vida


Livro Sexto (1962)

domingo, 20 de novembro de 2011

the yakuza, Sydney Pollack (1974)

É tudo uma questão de giri.
Segundo Ruth Benedict - no excelente livro que escreveu sobre o Japão intitulado The Chrysanthemum and the Sword - giri refere-se a uma categoria de obrigações; "dívidas que terão que ser pagas com equivalência matemática em relação ao favor recebido e existem limitações temporais" (p.116). 














E de onde terá vindo aquele pontinho vermelho?

A sugestão do filme vem, de novo, do devaneios.
 (LFB)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A diferença entre familiares e amigos é que os familiares dos nossos familiares continuam a ser nossos familiares enquanto os amigos dos nossos amigos não são necessariamente nossos amigos.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Prescrição de medicamentos por DCI

Na sequência do Prós e Contras de hoje, em que os bastonários da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos foram convidados a discutir a questão da prescrição obrigatória por Denominação Comum Internacional (DCI) e as condições em que está a ser legislada actualmente, não resisti a dar a minha opinião sobre o assunto.
 
Antes de mais, eu sou a favor da prescrição por DCI e da atribuição de liberdade de escolha e responsabilidade ao utente, desde que haja conhecimento, condições de segurança e confiança que o permitam.
Infelizmente continua-se constantemente a tentar dizer que, como os genéricos em geral são óptimos, não se pode usar argumentos baseados em casos esporádicos para contrariar a prescrição por DCI. Discordo em absoluto. A troca cega por qualquer genérico de cada princípio activo deve ser permitida apenas se estivermos certos de que todos os genéricos são seguros e equivalentes ao medicamento originalmente receitado e também entre si! Dado que notoriamente não se tem assegurado isso, devido quiçá à existência de quantidades ridiculamente grandes de genéricos e à falta de controlo do infarmed na sua introdução no mercado, isto não pode acontecer. Ou o infarmed passa a funcionar, ou deve passar a fazer-se concursos públicos para cada princípio activo, de modo a limitar o número de medicamentos disponíveis para venda e a aumentar o controlo cientifico e a confiança nos mesmos.

Dizer que a prescrição por DCI dá liberdade ao doente é ignorar que a liberdade implica informação. Já hoje se vê a confusão dos utentes com consequências como por exemplo a duplicação de tomas. Mesmo em relação ao preço, como é que se assegura que o utente pode escolher o mais barato? Como é que ele sabe? Quem é que consegue saber, para cada medicamento e a cada momento, quais os genéricos disponíveis e quais os mais baratos? Basta a pessoa que o atende dizer que há deste ou daquele e que não há do outro e acabou-se a liberdade do utente.

Passar o poder do médico para a pessoa que atende na farmácia não elimina a corrupção, só muda os intervenientes. Vejo semanalmente vários casos de trocas por medicamentos mais caros nas farmácias, mesmo com a cruz que em tempos teoricamente a proibia. A quem alega que "é preciso confiar no farmacêutico" dá vontade de responder "é preciso confiar no médico" e com isso justificar a manutenção do poder de prescrição tal como estava. Pura treta. Vale sempre a pena lembrar que as farmácias são estabelecimentos comerciais, com o natural objectivo de ter lucro, e que este advém do dinheiro que os utentes pagam pelos medicamentos, pelo que há um notório conflito entre o interesse do utente e o do dono da farmácia. Assim sendo, dizer que se está a pôr a escolha na mão dos utentes é mais que demagogia, é pura mentira.
Por fim, e em tom de aviso aos que tenham tido a paciência de ler isto, lembro que estando o Estado a comparticipar cada vez mais medicamentos em quantias absolutas e não em percentagem, quem vai pagar a diferença nas trocas por medicamentos mais caros será directamente cada utente comprador. Daí a falta de preocupação dos governantes com este problema, não lhes afecta os números.

Mais, e como disse hoje o bastonário da Ordem dos Médicos, se a ideia fosse passar para o mais barato sem outras considerações, bastaria uma lei que o obrigasse. Não faria sentido passar essa escolha para o farmacêutico ou para quem quer que seja. O utente informaria apenas se prefere comprar o medicamento prescrito, igual ao que tomava antes, ou mudar, nesse caso obrigatoriamente para o mais barato. 
Até parece simples.
(texto cedido por André Nóbrega)

domingo, 13 de novembro de 2011

O veredicto, Sidney Lumet (1982)

Está tudo no filme. A vida toda...


 Os ricos, os pobres, as ilusões, as mentiras.


A justiça. A lei. As preces. Os símbolos. 


A mulher. O amor e a traição.


O filme está a terminar. O que é que ela quer?


A sugestão do filme vem do devaneios.
 (LFB)
Porque não podemos ir de pijamas para a escola?

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A confusão do acordo ortográfico

Quanto a essa confusão e à adopção, ou não, das novas regras de bem escrever (ortografia) cumpre-me, em forma de clarificação da consciência, registar o seguinte: continuarei - pelo menos até 2015, prazo estabelecido pela lei - a escrever como se escrevia bem antes da nova maneira de escrever bem. E é sempre verdade que com o tempo tudo passa; com tempo a todas as mudanças nos adaptamos, até às mais absurdas.
É muito estranho ler - o que mostra que o acordo não é apenas sobre como escrever, mas também, inevitavelmente, sobre como ler - frases como "notável seleção"; "o projeto de relançar" (a primeira leitura que faço é sempre projêto e só depois, ah, projecto com o "e" aberto); "aspeto cultural"; "maldito inseto", etc.
Mais estranho ainda é o facto de haver várias listas de palavras:
i) a lista das palavras que se pode escolher como escrever - pode-se escrever, por exemplo, "acupuntura" ou "acupunctura" "caráter" ou "carácter";
ii) a lista das palavras que não mudam - por exemplo "adepto"; "dúctil",
iii) a lista das palavras que mudam em Portugal mas não no Brasil - "aceção" em Portugal, "acepção" no Brasil;
iv) A lista de palavras que mudam em Portugal e que o Brasil admite: "cético" em Portugal; "céptico" admite-se no Brasil,
v) entretenha-se o leitor fazendo cruzamentos com outros países de língua portuguesa.

Notas:
1) a Fonte das listas é o artigo hipercrítico de Fernando Venâncio, "acordo ortográfico - visita guiada ao reino da falácia", revista Ler, nº105, Setembro de 2011, pp.36-40 e 88-89.
2) Aqui n'O Germe continuarei a escrever como sempre escrevi. As citações serão transcritas tal e qual como o autor as escreveu. Na escola, pelo menos até 2015, escreverei como sempre e aos alunos será dada toda a tolerância que a lei permite.
3) O NÃO que a seguir se lê vem da Iniciativa legislativa de cidadãos (ILC): aqui
Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico. Leia, assine e divulgue!







(LFB)


Dulce Maria Cardoso

"(...) Só damos valor ao que não temos?
Ou isso ou uma coisa mais grave que é procurar fontes de infelicidade. Talvez tenhamos alguma vocação para isso. Se estivermos muito bem com o presente, não há mais nada a acrescentar. Na verdade, o bem-estar - e depois podemos falar da felicidade e de outros conceitos - é quase o antipensamento, e também quase a antivida. Tinha uma ideia mitificada da metrópole porque havia de tudo e era tudo melhor na metrópole. Coisas absurdas. Nós tínhamos as férias da escola de acordo com as da metrópole. Portanto, lá no tempo da cacimbo - com o tempo mais fresco - estávamos em casa, e no tempo quente estávamos nas aulas. Era tudo muito absurdo. Havia pessoas com alcatifa em casa, com lareira. Continuavam a fazer feijoadas, as pessoas ficavam todas encarnadas. Imitávamos a metrópole mas também tínhamos a sensação de que éramos portugueses de segunda.
(...)
Os retornados eram pessoas com mais espírito de iniciativa?
Não era tanto a iniciativa, pelos casos que depois fui conhecendo. Era mais o desespero, a fome. A fome desinquieta e desassossega muito.
A fome é uma força motriz?
Exatamente. Mais do que qualquer outra ideia. Depois temos a mania de romantizar. «Ah, a aventura.» Não é nada disso. São mesmo filhos para alimentar. Quando viemos para cá, é claro que a vida correu bem às pessoas que lá pertenciam aos serviços do Estado. Mas essa realidade não a conheço bem porque foram as pessoas que não ficaram nos hotéis. Para os retornados que conheço, de que posso falar e que foram os mais injustiçados, não foi assim. Os bem-sucedidos seriam bem-sucedidos em qualquer parte do mundo porque eram pessoas muito fortes e capazes. A maior parte não foi muito bem-sucedida, só que dos fracos não reza a história.
(...)
Vê-se mais como testemunha ou como interveniente, enquanto escritora?
Testemunha. Não gosto muito de ser protagonista.
Quando usei a expressão «interveniente» era no sentido de ser alguém que com essa proposta de reflexão pretende mexer de alguma forma no que a rodeia.
Não no sentido de o mudar. Quer dizer, vai-se mudando sempre. Cada ato nosso muda qualquer coisa. Acho, basicamente, que a história da civilização é a história da luta entre o bem e o mal. É a coisa maior que nos distingue. E depois temos este problema grave: o bem é antipensamento. Ou seja, não é dramático, não se consegue fazer o raio de uma ficção só com o bem porque é altamente monótono. Portanto, o mal aparece-nos com a sedução toda e aquilo é fantástico. Toda a nossa organização social são milénios a tentar proteger-nos do mal. O «não matarás», «não roubarás» e essas coisas todas são apenas uma maneira de vivermos em conjunto protegidos do mal que sabemos que há em nós. É aquela velha frase de S. Paulo: «Perdoa-me por não fazer o bem que quero mas o mal que não quero.» Por isso, é interessante pensar que se retirássemos o mal do mundo não tínhamos nada. Não tínhamos arte, romances, não tínhamos civilização sequer, como a concebemos.
Isso justifica um elogio do mal, quanto mais não seja pela necessidade cultural que temos dele.
Sim, não podemos prescindir dele. Eu, uma otimista, acho que haverá um dia em que poderemos prescindir dele, das suas formas mais puras pelo menos.
(...)
Há aqui uma homenagem e há também isto: o império, que teve cinco séculos, ruiu. Foi assustador ver o bicho em movimento. Aquela velha máxima que diz que nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma, e que gostamos tanto de aplicar à matéria, nas coisas afetivas e sociais não funciona. Perdem-se coisas e ganham-se coisas.
(...)
Correu mal porque era já tarde demais, e depois porque não houve vontade política para que corresse melhor.
Não houve vontade política por parte dos protagonistas políticos da altura?
Exatamente. E quando digo isto nem falo dos colonos brancos. Estou a falar dos que ficaram. Deixámos um país já em guerra entre os movimentos de libertação. Nós, Estado português, favorecemos uma parte. Demos a independência a um. Que ainda lá está. Aquilo foi tão bem dado que nunca mais saiu de lá. Ao menos deixámos uma coisa duradoura. Agora, consigo perceber o racismo que havia lá e muitos negam. Mas só me interessa pensar nestas coisas fazendo uma ponte com o presente. É relativamente fácil prendermo-nos àquilo que já não podemos mudar e criticar, culpar, quando neste momento estão a acontecer coisas muito semelhantes, embora não da mesma magnitude. Embora se possa dizer que a morte de um homem é tão trágica como a morte de cem milhões. Pode dizer-se que isto é uma versão lírica. Estamos viciados numa questão de escala. Neste momento Portugal passa por uma situação muito semelhante.
Está a falar de impor sacrifícios a um grupo social em nome de uma mudança histórica qualquer?
Sim. Em nome de um objectivo. Não pode ser. Cada um de nós vale a mesma coisa. Nós não somos peças de uma engrenagem em que uns vão para carne picada para salvar os outros. Não se pode dizer que há democracia enquanto existir sequer esse conceito ou essa possibilidade. Vamos ter um cartão de pobre, não é?
É o tipo de assistencialismo que lhe faz recordar o assistencialismo do IARN?
Sim. Era terrível. Havia retornados que preferiam ter fome a apresentarem-se com o cartão.
Isso é muito sensível, no seu romance, sobretudo na questão das roupas.
Sim. Havia aquela coisa de que os pobres não têm de ter gosto, não têm de parecer bem, precisam é de estar tapados. A pessoa em situação de pobreza fica sem necessidade alguma: de poder escolher o que come, de poder vestir-se. Continuamos a fazer o mesmo.
(...)
Voltou a Angola?
Não. E não penso voltar.
É uma recusa?
É, por várias razões. Já pareço aqueles políticos que têm sempre várias razões. Por um lado, acho perigoso mexer numa série de memórias.
Perigoso para a sua saúde pessoal?
Sim. Não sei como reagiria. Em termos pessoais não me interessam picos de emoção. Canalizo tudo para o que escrevo e depois gosto de uma coisa mais apaziguada. Mas é também porque o regime de Angola não é um regime aconselhável. Custa-me - para dizer o mínimo - perceber que Angola se tornou uma oportunidade de dinheiro e que toda a gente esteja contente porque vem para cá dinheiro angolano. Aquele dinheiro é criminoso. Temos de ter consciência disso. Não é uma sorte eles estarem a investir em Portugal, é uma vergonha. Isto tem de ser dito. Só pobres sem qualquer dignidade - como nos tornámos - podem achar isto bem. O Presidente de Angola está sempre nas listas dos homens mais corruptos do mundo. E nós fazemos negócios com ele e dizemos que é uma sorte? Mas em que raio de povo nos tornámos? Nós não somos isto. Os portugueses não são isto, o que é outra coisa.
(...)"

Entrevista de Carlos Vaz Marques a Dulce Maria Cardoso, revista Ler, número 106, Outubro 2011, pp. 29-32.

RUY BELO (1933-1978)

ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM CRIANÇAS

A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz

Ruy  Belo, Homem de Palavra(s) (1970).