segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

gratificações subjectivas e ordem na consciência

"Existem duas palavras cujo significado reflecte a nossa atitude relativamente aos níveis de compromisso com actividades mentais ou físicas. Estes termos são amador e diletante. Actualmente, estes rótulos são um pouco depreciativos. Um amador ou um diletante é alguém que não está muito a par, uma pessoa que não se leva muito a sério ou cuja actuação não se conforma com as normas profissionais. Originalmente, contudo, «amador», do latim amare, «amar», referia-se a uma pessoa que gostava do que fazia. Do mesmo modo, um «diletante», do latim delectare, «deleitar-se», era alguém que desfrutava de uma actividade. Os significados primitivos destas palavras reportavam-se, portanto, mais à experiência do que à realização; descreviam as gratificações subjectivas que se obtinham por fazer coisas, e não a forma como elas estavam a ser realizadas. Nada ilustra melhor a nossa mudança de atitude relativamente à experiência como o destino destas duas palavras. Tempos houve em que era admirável ser-se poeta amador ou cientista diletante, porque isso significava que a qualidade de vida podia ser melhorada pela dedicação a essas actividades. Gradualmente, contudo, aumentou a ênfase dada ao valor do comportamento em desprestígio dos estados subjectivos; o que se admira é o sucesso, a realização, a qualidade da execução e não a qualidade da experiência. Consequentemente, tornou-se embaraçoso ser-se chamado diletante, embora ser um diletante signifique alcançar o que é mais importante -  o desfrute que as acções possibilitam.
É verdade que o tipo de aprendizagem diletante fomentada aqui pode ser abalada mais facilmente do que a disciplina profissional, se quem aprende descurar o objectivo que o motiva. Leigos com interesses pessoais viram-se para a pseudociência para conseguir os seus intentos e, muitas vezes, os seus esforços quase não se distinguem dos amadores intrinsecamente motivados.
O interesse na história das origens étnicas, por exemplo, pode ser facilmente pervertido por uma procura de provas de superioridade relativamente a outros grupos. O movimento nazi, na Alemanha, recorreu à antropologia, à história, à anatomia, à língua, à biologia e à filosofia para forjar a teoria da supremacia da raça ariana. Académicos profissionais também foram apanhados por este projecto duvidoso apesar de ter sido inspirado por amadores e de ser regido por regras que pertenciam à política e não à ciência.
(...)
A má conotação que os termos amador e diletante adquiriram ao longo dos anos deve-se, em larga medida, ao esbatimento da distinção entre objectivos intrínsecos e extrínsecos. Um amador que julga saber tanto como um profissional está provavelmente errado e pretende ludibriar-nos. O objectivo de um cientista amador não é competir com profissionais no seu terreno, mas utilizar uma disciplina simbólica para alargar as suas faculdades mentais e criar ordem na consciência. A este nível, o conhecimento amador tem o seu lugar e pode mesmo ser mais eficaz do que o seu parceiro profissional. Mas, logo que o amador perde de vista este objectivo e utiliza o conhecimento principalmente para alimentar o ego ou obter benefícios materiais, torna-se numa caricatura do académico. Sem formação na disciplina do cepticismo e da crítica recíproca subjacentes ao método científico, as pessoas comuns que se aventuram nos domínios do conhecimento com objectivos preconceituosos podem tornar-se mais cruéis e mais ostensivamente indiferentes à verdade do que o académico mais corrupto."
                                  Mihaly Csikszentmihalyi, Fluir, (tr. M. A.), Relógio D´Água, 1999, pp. 192-4.               

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Ahmad Jamal - Moods


Homem máquina

"Uns quilómetros adiante, perguntou-me de repente: "Já ouviste falar no processo de Bessemer?"
"Já", disse eu. "Demo-lo em química, na escola".
"Alguma vez ouviste falar do John Henry, o preto de aço? Pois bem, morava aqui mesmo. Quando foi inventada uma máquina para cravar estacas de aço num leito de rio, eles dissaram que o trabalho humano nunca poderia competir com a máquina. Os pretos fizeram uma aposta, e trouxeram o mais forte dentre eles: o John  Henry. Diz-se que os bíceps dele tinham mais de cinquenta centímetros de diâmetro. Pegou em duas marretas, uma em cada mão, e cravou cem estacas mais depressa do que a máquina. Quando chegou ao fim, deitou-se no chão e morreu. Nem  mais! Isto é a região do aço."
                            Oliver Sacks, Em movimento - Uma Vida, Relógio D'Água, 2015, p.76.                

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

"Nenhum homem, durante um espaço razoável de tempo, pode usar uma cara para si e outra para a multidão, sem que por fim fique confuso sobre qual delas é a verdadeira."

(Nathaniel Hawthorne, A letra Encarnada (The Scarlet letter), tr. Fernando Pessoa, Pub. D. Quixote, 2009, p. 227)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O mundo dos meus olhos.

Quem sou eu para avaliar a arte? Mas a verdade é que ser arte é pôr-se a jeito. Quando a arte é boa sou eu que saio destrochado. Quando a arte é má, é ela que sai destroçada.

Robert Glasper - Stella By Starlight


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

continuar a moldar

«Há momentos em que chego a pensar que chegou a hora, por exemplo num daqueles dias em que me sinto em baixo», disse ele. «Às vezes, uma pessoa está farta de tudo, percebe? Eu moía o juízo à minha Shelley. Dizia-lhe: "sabes que em África, quando uma pessoa envelhece e deixa de produzir, o grupo leva-a para a selva e deixa-a lá para ser consumida pelos animais selvagens." Ela achava que eu era doido. "Não", dizia eu. "Já não produzo nada, só estou a custar dinheiro ao governo." De vez em quando, dá-me para isso. Mas depois penso: Ei, a vida é o que é. Deixa-te ir. Se te querem por cá que mal tem?»
(...) Estávamos a falar sobre a história da vida dele há quase duas horas, quando me apercebi de que, pela primeira vez na vida, não tinha medo de chegar à fase em em que ele estava. O Lou tinha noventa e quatro anos e realmente não havia nada de cativante nisso. Os dentes pareciam pedra caídas. Doíam-lhe todas as articulações. Perdera um filho e a mulher já não conseguia andar sem o andarilho (...). Mas também era evidente que conseguia viver de uma maneira que o fazia sentir que ainda tinha um lugar no mundo. As pessoas ainda o queriam por perto. E isso levantava a possibilidade de o mesmo ser verdade, um dia, para qualquer um de nós.
O pavor da doença e da velhice não é só o pavor das perdas que nos vemos obrigados a suportar; é também o pavor do isolamento. À medida que as pessoas se vão apercebendo da finitude da sua vida, deixam de pedir muito. Não procuram mais riquezas. Não procuram mais poder. Pedem apenas que as deixem, dentro do possível, continuar a moldar a história da sua vida no mundo:  a fazer escolhas  e a manter relações com os outros segundo as suas próprias prioridades. Na sociedade moderna, temos vindo a partir do princípio de que a debilidade e a dependência excluem esse tipo de autonomia. O que aprendi com o Lou (...) é que, sim, é possível.
«Não me preocupo com o futuro», disse o Lou. «Os japoneses têm a palavra karma. Significa: se é para acontecer, não há nada que eu possa fazer para o impedir. Sei que o tempo é limitado e daí? Tive uma boa vida.»

Atul Gawande, Ser Mortal, Lua de Papel, 2014, p. 148-149

pensamentos e preocupações

Morrer costumava fazer-se acompanhar por um conjunto predefinido de costumes. Guias sobre a ars moriendi, a arte de morrer, eram extraordinariamente populares; uma versão medieval publicada em latim, em 1415, foi reeditada em mais de uma centena de edições em toda a Europa. As pessoas achavam que a morte devia ser aceite estoicamente, sem medo ou autocompaixão ou esperança de algo mais que não o perdão de Deus. Refirmar a fé, arrepender-se dos seus pecados e desapegar-se dos seus bens materiais e desejos mundanos eram etapas cruciais, e os guias ofereciam às famílias preces e perguntas para fazerem aos moribundos, de modo a colocá-los no estado de espírito certo, nas suas derradeiras horas de vida. As últimas palavras revestiam-se de uma reverência especial.
Hoje em dia, uma doença catastrófica e rápida é que é a exceção. Para a maior parte das pessoas, a morte só chega depois de uma longa luta médica com uma doença que, no fim, é imbatível (...). Em todos os casos, a morte é certa, mas o momento em que vai chegar, não. Por isso, toda a gente se debate com esta incerteza: como, e quando, aceitar que a batalha está perdida? Quanto a últimas palavras, parece que praticamente já nem existe tal coisa. A tecnologia pode sustentar os nossos orgãos até estarmos muito para lá de um estado de consciência e coerência. Além disso, como é que podemos tratar dos pensamentos e preocupações dos mortos, quando a Medicina fez com que se tornasse quase impossível ter a certeza sobre quem é que está a morrer? Estará  uma pessoa com um cancro terminal, demência ou insuficência cardíaca incurável efetivamente à beira da morte?

Atul Gawande, Ser Mortal, Lua de Papel, 2014, p. 158

Miles Davis Quintet



Trumpet: Miles Davis
Saxophone: Wayne Shorter
Piano: Herbie Hancock
Bass: Ron Carter
Drums: Tony Williams

dois eus diferentes

"Achamos que uma dor de longa duração é pior do que uma dor de curta duração e que ter um nível médio de dor maior é pior do que ter um nível médio de dor menor. Mas não foi nada disso que os doentes disseram. As suas classificações finais ignoraram em grande parte a duração da dor. Em vez disso, as classificações regeram-se mais por um fenómeno a que Kahneman chamou « a regra do fico-fim»: a média da dor sentida em apenas dois momentos: o pior momento em toda a intervenção e o final. (...)
As pessoas parecem ter dois eus diferentes: um que passa pelas experiências e vivencia cada instante, e outro que recorda as experiências e atribui quase todo o peso do juízo de valor a dois meros pontos no tempo, o pior e o último. O eu que recorda parece ater-se à regra pico-fim, mesmo quando o final é uma anomalia. Bastou uns minutos  sem dor no fimda intervenção médica para reduzir drasticamente as classificações globais de dor dos doentes, inclusive tendo sentido mais de meia hora intensa de dor. «Não custou tanto», disseram depois. Um final penoso também fez disparar de maneira igualmente radical as classificações de dor. (...) A investigação demonstrou também que o fenómeno se aplica exatamente da mesma maneira à forma como as pessoas classificam as experiências agradáveis. Toda a gente conhece a experiência de ver uma prova desportiva em que uma equipa joga lindamente durante o jogo quase todo e depois, no fim, estraga tudo. Sentimos que o final dá cabo da experiência toda. Existe, todavia, uma contradição na origem desse valor. O eu que vive as coisas desfrutou de horas de prazer e de apenas um momento de desprazer, mas o eu que recorda não vê prazer nenhum.
 Se o eu que recorda e o eu que vive podem ter opiniões radicalmente diferentes sobre a mesma experiência, então a pergunta difícil que se levanta é a qual dos dois devemos dar ouvidos."
Atul Gawande, Ser Mortal, Lua de Papel, 2014, p.233

obtusos e negligentes

"A sociedade tecnológica esqueceu aquilo a que os estudiosos chamam o «papel do moribundo» e a sua importância para as pessoas à medida que a vida se aproxima do fim. As pessoas à beira da morte querem partilhar recordações, transmitir conhecimentos e conselhos, firmar relações, definir o seu legado, fazer as pazes com Deus e certificar-se de que os entes queridos que deixam para trás ficarão bem. Querem terminar a sua história nos seus próprios termos. Ese papel, segundo os investigadores, é um dos mais importantes da vida, quer para quem está a morrer, quer para quem cá fica. E se assim é, a forma como negamos às pessoas esse papel, por sermos obtusos e negligentes, é motivo de vergonha para todo o sempre. Vezes sem conta, nós, profissionais de saúde, inflingimos feridas profundas no fim da vida das pessoas e depois ficamos a ver, sem termos consciência do mal que fizemos."
Atul Gawande, Ser Mortal, Lua de Papel, 2014, p.241